Quando eu salvo um jogo de 300 reais na minha wishlist pra vigiar o preço, eu me sinto uma menininha órfã daquelas de filme antigo: coberta de fuligem, parada com os olhos enormes na frente da única loja de brinquedo da cidade, sonhando com um milagre de Natal.
É uma sensação boa. Por volta da época em que virou moda cantor de MPB gravar música em italiano, uma jovem Laurinha se divertia depois da aula com seu bem mais precioso: o CD 404 Jogos Vol. 5, da revista Jogos Click.
Esses quatrocentos (e quatro) jogos me sustentaram quando a internet discada não carregava nem a tirinha do dia no site da Turma da Mônica. Vários dos momentos mais formativos da minha infância vêm desse humilde CD.
Boom Boom Volleyball, por exemplo, um joguinho de flash no qual duas gostosas gemem toda vez que acertam a bola, fez muito pra confundir uma sexualidade que já não precisava de qualquer confusão. Pra desbloquear o modo topless (!!), era preciso chegar ao fim do nível 5; coisa que eu muito tentei e nunca consegui.
Demorou uns anos até chegar no bairro uma lanhouse onde eu pudesse desbravar jogos mais complexos, capazes de usar ao mesmo tempo o mouse e o teclado.
A febre era o GTA IV, uma obra à frente do seu tempo: se na época me parecia deprimente andar pela cidade cinza e desolada, hoje seria perfeitamente normal lançar um jogo em que você leva seu primo pra jogar boliche e ele te conta da vez que o pai dele quebrou um taco de golfe nas costas da mãe.
Meu preferido mesmo era o já-retrô GTA: San Andreas, cuja rádio me obrigava a dar uma volta a mais no quarteirão só pra terminar de ouvir os comerciais. Pensando bem, deve ser daí que veio meu grande amor por propaganda de coisa que não existe.
Um dia eu cheguei na lanhouse com os bolsos cheios de moeda e descobri que alguém tinha apagado meu save de GTA. Dezenas de horas deletadas por algum moleque cruel, que provavelmente sentou no MEU lugar sem camisa e encostou as costas grudadas de suor na MINHA cadeira de plástico da SKOL — a pior das violações.
Agora que eu tenho em casa um notebook gamer, com um modo de alta performance ativado na tecla G (de Gamer) e uma conexão fibra ótica que não cai desde que passou um ciclone em São Paulo, a maior parte do meu tempo de tela eu gasto vendo tiktok de faxina no celular. Se eu abro algum jogo, pra dar uma variada, quase sempre é The Sims ou um negocinho de flash dos anos 2000 que rodaria no tablet de uma geladeira.
Parece tão distante a época em que eu gastava todo meu tempo livre descobrindo jogos. Quando divulgaram o The Sims 2 na revista Smack! eu recortei a página do anúncio e colei na parede do quarto, pra ficar encarando antes de dormir.
O desejo, diz Lacan¹, é como um furão. Evasivo. Sempre virando a esquina. Ter acesso instantâneo a todos os jogos do mundo sufocou minha curiosidade — é preciso alguma tensão, alguma quebra de expectativa, pra me cativar de novo, ou eu tendo a revisitar os mesmos jogos de sempre.
Pra dar um gás nesse finzinho de junho — a quarta-feira do calendário anual —, eu resolvi compilar uma lista com três recomendações de jogos que despertaram em mim uma curiosidade há muito tempo morta. Jogos pra quem não gosta mais de jogos, por assim dizer.
JOGOS PRA QUEM NÃO GOSTA MAIS DE JOGOS
Por assim dizer
ANIMAL WELL (2024)
Gostar de ANIMAL WELL é o equivalente, em jogos, a se interessar por uma pessoa só porque você não entende qual é a dela.
O jogo não te diz o que fazer. Não tem missão, não tem tutorial, ninguém te explica o que tá acontecendo. Você sai andando e descobre.
A impressão que dá é que o criador de ANIMAL WELL (que fez o jogo inteiro sozinho. Diga-se de passagem) é alguém que se respeita. Numa era em que os jogos te infantilizam cada vez mais, tem que confiar MUITO no próprio taco pra abandonar o jogador desse jeito. Ou se não é no próprio taco que ele confia, é em você: na sua capacidade de se entregar ao mistério.
Um exemplo: ontem, enquanto eu passeava pelo jogo procurando inspiração pra esse texto, eu cruzei uma parte do cenário que a essa altura eu já olhei umas cem vezes. Só que dessa vez me ocorreu que essa parte do cenário parece um código de barras. Foi uma observação muito casual mesmo; eu só reparei que eram umas decorações grossas, outras finas e uns espaços no meio.
Fosse qualquer outro jogo, eu ignorava e seguia em frente. Mas eu parei, pensei um pouco, baixei um aplicativo de leitura de código de barras no celular e apontei pra tela — e o aplicativo reconheceu uma mensagem.
O resultado em si tá borrado pra não dar (mais) spoiler, então não vou dizer o que é, mas cara, que absurdo. Não tem NADA dentro do jogo indicando que pra resolver um dos puzzles você precisa baixar um leitor de código de barras. Ele simplesmente deixou o segredo lá e quem resolver que resolva.
Tá cheio disso em ANIMAL WELL. Tem mensagem secreta nas paredes, desenho que você só encontra com a lanterna UV, códigos dentro de códigos. Você ouve um apito alto de vez em quando e fica que porra é essa??? pra só HORAS depois descobrir o que era. Chega a te deixar meio maluco, porque você desconfia de qualquer padrão, qualquer detalhezinho — e quando a desconfiança é recompensada com um segredo, a coisa te dá uma adrenalina incrível.
O que não é dizer que o jogo inteiro é assim. Segundo o criador, você pode pensar ANIMAL WELL em três camadas.
A primeira é a mais simples, bem acessível, que leva só umas horinhas pra zerar. Depois vêm os ovos — 64 ovos colecionáveis escondidos pelo jogo. (Eu, que sou teimosa, tou procurando todo fim de semana desde 11 de maio, e agora só falta um. Se você sabe onde tá, não me diga de forma alguma.)
Já a terceira camada é a dos segredos; puzzles que, como o próprio criador diz, “nem se apresentam como puzzles” — tipo o código de barras. Só encontra o problema quem tiver querendo problema.
Alguma hora eu vou cansar desse jogo e mandar o mistério pra casa do caralho, mas por enquanto eu vou dando trela. Tou fazendo nada mesmo.
MINI MOTORWAYS (2021)
Eu amo que a Adriana Calcanhotto fala “Você tem MEIA HORA / pra mudar a minha vida”. Como se ela tivesse levando em consideração você ir de ônibus pra casa dela.
HER STORY (2015)
Esse é um elogio estranho de se fazer — o tipo de elogio que você ouve da sua mãe e repete na terapia vinte anos depois —, mas o que eu mais gosto em HER STORY é o potencial que ele tem de ser um jogo melhor.
HER STORY saiu em 2015 e até hoje ninguém nunca fez um bom jogo nesse formato, incluindo o criador de HER STORY, que já tentou três vezes e até agora nada. É como se alguém tivesse inventado o micro-ondas e ainda não existisse uma lasanha congelada decente no mercado.
Funciona assim: você ganha acesso ao sistema da polícia, que guarda todos os depoimentos de uma mulher em um caso tal. Quanto mais clipes você acha, mais da história você entende. Quem é essa mulher? Qual a conexão dela com o caso? Ela tá ali de testemunha ou de suspeita?
Esses depoimentos dela tão separados em vídeos curtinhos, de alguns segundos, e todas as palavras que ela fala nos clipes ficam registradas no sistema. Você só encontra um clipe buscando alguma palavra que ele contém; a primeira sugestão do sistema é MURDER (assassinato). Ótimo sinal!
O resto vai de você. Talvez seja uma boa investigar “Simon”, que é o nome do pobre coitado em questão. Ou você pode ir direto em arma, morte, etc e achar várias falas diferentes, que te dão outras pistas, outros nomes.
Dá até pra chutar umas coisas, mas os clipes mais importantes são difíceis de achar. O roteiro é pensado pra exigir buscas muito específicas, que ninguém jogaria aleatoriamente. Tem que prestar atenção mesmo no que ela diz.
Eu AMO essa ideia de navegar um arquivo de vídeos pra montar a história. Amo. Tem tanto jeito de fazer isso funcionar. E se o jogo fosse o canal do Youtube de algum influenciador assassinado, e você precisa assistir cada vídeo pra entender quem são as pessoas que aparecem e quem teria motivo pra isso? E se fosse a galeria do celular de alguém que desapareceu? Ideia grátis!! Pode pegar. Escrever um email por semana já exige 110% da minha expressão criativa.
¹ “É de lá que se inclina, é lá que desliza, é lá que foge como o furão, o que chamamos desejo.” in LACAN, J. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1985), p. 203.
A internet CLAMA por um canal de laurinha lero na twitch. "jogando em voz alta"? essa sugestão foi de graça. pra mais sugestões, 9.90 ao mês. de nada.
Laurinha iria assinar sua newsletter esse mês, mas vou usar o dinheiro para comprar esse joguinho de fazer estrada. Por morar entre duas avenidas movimentadas que sempre estão obras, sinto que estou preparado para congestionar tudo às 17:38h de uma terça a tarde.