cada site que eu visito me torna uma pessoa melhor
uma introdução à capital interplanetária do x-salada
Refestelada na cama depois de duas deliciosas horas de sono —o aperitivo perfeito pras próximas onze horas de sono—, me ocorre que talvez não seja normal dormir tanto assim. Na adolescência até vai, mas aos 31 anos? Sei não. Deve ter algum problema neurológico metabólico vitamínico respiratório digestivo intestinal hormonal e também algo de errado com o espírito, sem falar nas doenças mentais concomitantes, que explique a pessoa acordar precisando de um cochilo.*
Até aí, tudo bem. Estranho seria se um organismo saísse ileso do meu estilo de vida workaholic. O trabalho de uma jornalista especializada em internet (eu agora sou jornalista. venho sendo) exige dedicação absoluta; um estado de alerta constante que eventualmente desemboca no TTT, ou Tempo de Tela Total.
Favor não confundir as coisas! Ao contrário do “tempo total de tela”, métrica que o celular usa pra te fazer contemplar a própria mortalidade, o Tempo de Tela Total é um conceito que eu mesma inventei pra descrever o estado de iluminação que alguém atinge quando passa todos os minutos de todos os dias na internet.
Assim como o monge budista desapega das posses pra alcançar o nirvana, o TTT exige do praticante a renúncia completa à realidade, e em troca te recompensa com algo muito mais valioso: um vídeo engraçado que seus amigos ainda não viram.
Foi numa dessas que eu conheci Jozi_baby_face.
Jozi é uma menina que alega ter 38 anos, mesmo sendo evidente a qualquer um, incluindo você, que o rostinho dela é de 17. Não só o rosto: as tranças em maria-chiquinha, típicas da adolescência tardia, e o olhar inocente, quase lobotomizado. É tudo inconfundivelmente jovial.
Procurando despistar o público do fato de que ela mesma é apenas uma adolescente precoce, Jozi mergulha na cultura dos seus antepassados, postando referências que só uma mulher de seus trinta e poucos anos apreciaria, como memórias de brincar na rua ou um cover não muito afinado de AS LONG AS YOU LOVE ME.
Admirável o esforço de pesquisa! Qualquer música dos Backstreet Boys tem quase o dobro da idade dessa moça. Ainda assim, a própria Jozi acaba se entregando. Abordada em público por uma fã, que a censura por andar no shopping sozinha a essa hora da noite, ela retruca: Eu já sou uma adulta!!
A frase, tão normal aos ouvidos de uma adolescente, soaria estranha vindo de uma suposta mulher de trinta-e-oito. Afinal, aos 38 anos ninguém diria que “já” é adulta, e sim que vem sendo adulta, e que inclusive logo chegará ao ponto médio da vida, quando sem dúvida enfrentará uma grande crise antecipando a transição a não-ser-adulta-mais.
Pensando bem, talvez seja essa a intenção da Jozi. Numa sociedade obcecada pela juventude, ela ousa ser contracultura: rejeita a eterna adolescência e se antecipa, orgulhosa, ao lugar de Mulher Que Envelhece. Mensagem lindíssima e necessária; parabéns a ela! (Mas não se preocupe, Jozi. Você mesma ainda nem fez 18 anos. Tem muito chão pela frente!)
Falando em mensagem necessária, outro ativista que vem me agradando bastante é o Malabarista Mordedor de Maçãs, ou @apple_biting_juggler.
Via de regra eu tento não escrever sobre americano por uma certa questão aldo-rebelística de resistir à hegemonia da língua inglesa, mas com o Malabarista não há o que temer: ele nunca fala em inglês. Ele nunca fala nada. O único som que ele produz é o das maçãs sendo destruídas.
E que som! Por favor, pelo amor de deus, assista o vídeo abaixo com o volume no máximo (de preferência perto do seu chefe, cônjuge ou animal de estimação idoso):
Repare na musicalidade das mordidas — esse catchá catchá catchá que remete aos cascos de um cavalo contra o asfalto, à digitação ágil de um estenógrafo de tribunal, a uma percussão de tapas numa bunda suada. Tudo isso somado à respiração do Malabarista, que resfolega e engasga nos pedaços de fruta, disposto a dar a vida pela arte. É tudo muito bonito.
Mais bonito ainda, eu diria, se você reparar que essa é a primeira vez que você vê um malabarismo sendo descrito pelo som.
Pense nas implicações disso. Nas últimas décadas, pouco ou nada tem sido feito pra remediar a falta de acesso dos cegos (e pessoas de baixa visão) à arte circense. Contorcionistas, trapezistas, acrobatas; é tudo muito silencioso, muito visual. Muito restrito. Finalmente, com o trabalho do Apple Biting Juggler, um malabarista pode ser apreciado por meio de outros sentidos. Aliás, fica até melhor de olhos fechados, que aí você não se distrai tanto com a estética meio vídeo-da-Al-Qaeda que ele tende a adotar. Vitória da acessibilidade!
Isso sem falar, é claro, na questão nutricional. Querendo ou não (e Deus sabe que eu quero!), seu algoritmo molda seus hábitos. O Tiktok me incentivou a beber mais água, o Youtube mudou o jeito que eu organizo minha geladeira. Cada site que eu visito me torna uma pessoa melhor.
Coube ao Malabarista, então, a minha reeducação alimentar —coisa que ele vem tirando de letra. Raramente se vê uma pessoa tão determinada a incorporar frutas à própria dieta. Parece até que ele tá comendo à força, por recomendação médica, e esse malabares é a versão dele de tampar o nariz pra tomar xarope.
A experiência audiovisual do Apple Biting Juggler é tão imersiva que eu mesma me sinto capaz de comer maçã um dia.
Não agora! Um dia. Sem pressa. Aos pouquinhos chegamos lá. Por enquanto, minha rotina alimentar continua a mesma: 60mg de antidepressivo matinal engolido a seco, igual cachorro, seguido de uma tarde inteira em jejum por esquecer que eu habito uma forma física e aí um senhor jantar na Lanchonete Chapada, cujo X-Chapada eu venho apelidando carinhosamente de Sanduíche Que Faz Passar Mal, por razões que certamente não escapam ao intelecto do leitor.
Aliás, falando em sanduíche, sabia que o Brasil tem a honra de abrigar a capital interplanetária do X-Salada?
Segundo Vaguinho Espíndola, a capital interplanetária do x-salada fica na cidade de Criciúma (SC) —onde, por uma dessas coincidências cósmicas e inexplicáveis, é o próprio Vaguinho que ocupa o cargo de prefeito.
Sorte a dele! Queria eu ser prefeita da capital interplanetária de qualquer coisa. Me avisem se tiver alguma sobrando. Por enquanto, a única que eu conheço já tá ocupada pelo tal do Vaguinho Espíndola, que apesar desse nome de bicheiro dos anos 80 parece estar comprometido com a boa administração pública.
Digo porque eu acompanho o Vaguinho pelo instagram, e mesmo num feed populado por malabaristas mordedores de maçã ele se destaca.
O homem é uma máquina. Em poucos meses de mandato, Vaguinho já tinha concluído obras importantes, como a criação e distribuição nas escolas do Álbum de Figurinhas Oficial de Criciúma. Constam do álbum todas as maiores atrações da cidade — o Monumento às Etnias, que abrange um total de cinco grupos étnicos (mais do que suficiente), o Parque Astronômico Albert Einstein E=MC² e, é claro, o prefeito Vaguinho Espíndola.
O que não é dizer que Vaguinho se deslumbra com o glamour do Poder Executivo. A verdade é que o prefeito de Criciúma entende como poucos que o trabalho de um bom representante é preencher, na alma do eleitorado, o vácuo deixado pelos apresentadores dominicais do SBT.
Pensa comigo: na sua opinião, como um governo deveria discutir com o povo a questão das pessoas em situação de rua? Debates públicos? Palestra nas escolas? Nada disso. A abordagem correta, profetizada pelo finado Augusto Liberato e, antes dele, por Jesus Cristo, é transformar o prefeito em morador de rua por um dia.
Com ajuda de uma equipe profissional de maquiagem, Vaguinho sai irreconhecível às ruas de Criciúma, disposto a testar a solidariedade do cidadão médio— e encontra ótimos resultados.
De uma criança, ele recebe pão e café. De uma estranha no terminal, uma oração. Alguns carros desaceleram e oferecem dinheiro. Talvez o prefeito da sua cidade recusasse, agradecendo e explicando o experimento social; Vaguinho não só aceitou como ainda aproveitou pra calcular a taxa de conversão.
Que fique claro: esse vídeo é incrível. São mais de vinte horas do Vaguinho vagueando pela cidade, condensadas em cinco minutos pra garantir o engajamento nas redes. Tudo filmado às escondidas, claro, a fim de capturar reações genuínas, como na emocionante cena em que o prefeito (em situação de rua) é ignorado pela própria família.
Mas nem só de flagras vive uma prefeitura. Pra reter a atenção do eleitorado, é preciso um bom marketing. Um gancho. Algo que diferencie Criciúma dos demais municípios no extremo sul catarinense.
Pensando nisso, Vaguinho anunciou a primeira edição do festival criciumense de X-Salada (como convém à capital interplanetária) e já aproveitou pra apresentar o novo mascote do evento: XISITO, o X-Salada antropomórfico.
Sem querer entrar numa polêmica mas já entrando, eu tenho minhas questões com o XISITO. Primeiro que o pão de um x-salada não é quadrado. Isso aí é o mínimo. Nem era pra eu tar aqui te dizendo isso. Se o seu festival envolve um mascote em forma de hambúrguer, o mínimo que você precisa fazer é acertar o clássico formato redondo que todos nós amamos.
Segundo que o topo do lanche tá errado. X-Salada é alface, tomate, carne e uma fatia de queijo; o próprio nome já diz. Por que o design do queijo tá em bolinhas? Parece uma cabeça de cachos louros contidos por uma bandana verde, como se o XISITO tivesse num filme sobre a guerra do Vietnã. Esse é o problema de você municipalizar o desenvolvimento de mascotes; NUNCA que o governo federal cometeria um erro desses com o Zé Gotinha.
Indignada, eu recorri à seção de comentários no anúncio do XISITO, procurando outras manifestações de espanto; e não encontrei nada. Todo mundo parecia achar perfeitamente normal o design do mascote. Um erro desses, e ninguém liga? Na suposta capital interplanetária do X-Salada?
E olha que eles levam o negócio a sério mesmo. Pra você ter ideia, o Álbum Oficial de Criciúma dedica uma página inteira ao X-Salada, traçando a história do lanche desde a época em que ele ainda nem incluía milho.
MILHO?
Tá explicado. Criciúma inventou a própria variante do lanche, que além do alface e tomate leva maionese, milho e ervilha. (Muito milho. Muita ervilha.)
Nada contra! Talvez seja justamente isso o que eleva Criciúma ao status de capital interplanetária, entre tantas outras possíveis sedes na nossa galáxia. Só os covardes aperfeiçoam uma fórmula batida. Cabe ao artista desbravar novos caminhos pelo desconhecido. Um bom x-salada se encontra em qualquer lugar; um x-salada que desafia os limites do conceito de salada, só em Criciúma.
Faz um tempo já que eu descobri isso, enquanto caminhava a esmo pela internet, e desde então não consigo pensar em outra coisa. A ideia de um x-salada com milho e ervilha despertou meu interesse de um jeito que nenhum malabarista mordedor de maçãs conseguiu. Talvez seja o caso de eu mesma inventar algo que ninguém nunca fez, algo completamente novo: um jornalismo na vida real.
Está decidido. Eu vou a Criciúma provar o x-salada.
Pra mim é até conveniente, que eu já conheço alguém por lá.
* Favor não me diagnosticar.




















brilhante a estratégia política do prefeito vaguinho de mostrar o quão solidário é o povo criciumense, à exceção de sua própria família
Revoltante o álbum de figurinhas de Criciúma não mencionar a célebre Isa Thomé!