Após convidar Madonna a capengar por mais de duas horas com uma bandeira do Brasil no lombo em nome do Projeto Vida Ativa, promovido pela Secretaria Municipal do Envelhecimento Saudável, o prefeito Eduardo Paes anunciou sua intenção de sujeitar a sexagenária banda U2 ao mesmo suplício em 2026.
Esperto ele. Na história do Rio de Janeiro, poucas manobras políticas se mostraram tão eficazes quanto a de convocar a cidade pra assistir um idoso dar seu último suspiro em Copacabana. Cesar Maia — eleito três vezes à prefeitura do Rio — organizou em 94 um show do Rod Stewart que atraiu o modesto contingente de quatro milhões de pessoas; e outro dos Rolling Stones, em 2006, do qual meus pais só voltaram às onze da manhã do dia seguinte.
Embora parte do sucesso desses megashows se deva ao entusiasmo carioca em comparecer a todo e qualquer evento grátis, é preciso reconhecer o papel da praia de Copacabana, no imaginário global, como o palco perfeito pra um espetacular fim de carreira. Não admira, então, que a atração do ano seja a combalida cantora Lady Gaga.
Com a reação letárgica dos seus fãs ao álbum MAYHEM, prorrogam-se os catorze anos da Gaga sem um hit solo — marca comparável apenas à do nosso José Bonifácio, o Boninho, recém-demitido da Globo após 12 anos sem emplacar um único sucesso.
Tentar ele tentou.
Desde o THE VOICE BRASIL, seu último hit orgânico, Boninho encabeçou DEZESSEIS novos formatos, colecionando pelo caminho alguns dos maiores desastres da emissora: a medonha CASA KALIMANN, o inexplicável ZERO1 (programa de games do Tiago Leifert, “exibido” domingo uma da manhã) e a catastrófica ZIG ZAG ARENA, tão ruim que obrigou a Globo a descartar sete episódios prontos.
Tirando o É DE CASA, que segue respirando por aparelhos nas manhãs de sábado, só duas estreias vingaram: THE VOICE KIDS e THE VOICE +, ambas apelando pro amor que o público brasileiro tem em ver um fudido se humilhar pela menor quantidade de fama possível. Talvez por isso a aposta final do Boninho tenha sido o ESTRELA DA CASA — fracasso tão grande que o Espiadinha parou de cobrir o programa na segunda semana.
Na contramão do desesperado Boninho, Gaga não parece almejar o sucesso.
De fato, apenas um desprendimento beatífico em relação ao mundo material explica a última década da sua carreira. Assim como o finado Papa Francisco, que abriu mão do Palácio Apostólico em favor de uma humilde kitnet na Casa Santa Marta, Gaga vem frequentando os mais inóspitos gêneros musicais. Já são dois álbuns de jazz, um de country e agora um pop-rock, no melhor estilo CPM 22. Isso sem falar na escolha de projetos hollywoodianos, que incluem o muito-criticado e pouco-assistido JOKER: LOUCURA A DOIS (2024) e o não-muito-melhor CASA GUCCI (2021), descrito sucintamente pela Boscov como uma bagunça de filme.
Nas vésperas da sua apresentação em Copacabana, cabe a mim, enquanto tastemaker e autoridade cultural, revisitar todos os discos da Gaga pra que você não precise. O que é que eu não faço por uma pauta…
THE FAME (2008) e THE FAME MONSTER (2009)
THE FAME é um daqueles álbuns que eu não consigo ouvir sem ser BOMBARDEADA por memórias sensoriais dos meus treze anos: o salto anabela grudando na pista da matinê, o cheiro doce e enjoativo da máquina de fumaça, uma caipirinha de morango sem a cachaça e meio que sem o morango também. Nada como cantar I wanna take a ride on your disco stick tendo apenas a mais vaga noção do que seria um pinto. Tempos mais simples!
Esse disco é tão absurdo que eu teria dificuldade em me limitar a DEZ músicas preferidas; que dirá uma. Excluindo as óbvias, THE FAME e BOYS BOYS BOYS são as que mais me fizeram rebolar de ontem pra hoje na cadeira do escritório, e MONEY HONEY é uma velha amiga — lembro bem do gloss colando minha boca quando eu cantava esse refrão cheio de consoante bilabial. THAT’S MONEY HONEY!
Relançado no ano seguinte sob o nome THE FAME MONSTER, o disco ganhou oito faixas extras, incluindo BAD ROMANCE, ALEJANDRO e a maravilhosa TELEPHONE, que à época me pareceu algo totalmente novo no mundo da música — talvez porque eu só tivesse começado a escutar música dois ou três anos antes.
Curioso isso de estrear música boa num relançamento. Não seria o caso de guardar pro álbum seguinte? Vai ver ela achava que ia continuar produzindo em alto nível pelo resto da vida, então tudo bem relegar uma TELEPHONE ao status de faixa-bônus. Ledo engano, como veremos adiante; mas agradeço a impaciência da Gaga, que permitiu que eu ouvisse Cause you’re a criminal / As long as you’re mine pensando num menino cujo apelido na escola era Lobão.
BORN THIS WAY (2011) e ARTPOP (2013)
BORN THIS WAY, segundo disco da Gaga, dificilmente seria tão bom quanto o primeiro — e de fato não foi.
É uma seleção frustrante. THE EDGE OF GLORY, por exemplo, abre com catorze segundos chiquérrimos. Uma coisa meio Arca, meio Björk, meio vanguarda do pop. Chique! Aí entra um pianinho, a Gaga começa a cantar e estraga tudo. Outras faixas resistem à digestão; desafio qualquer leitor do Respondendo a ver se ainda lembra da melodia em THE QUEEN cinco minutos depois de ouvir.
Mesmo prejudicado pelos elos fracos, BORN THIS WAY define o que eu entendo como o som da Gaga — música dançante com uma aura maligna. Enquanto THE FAME se contenta com trocadilhos de pinto e só arreganha os dentes em POKER FACE, FAME MONSTER lança as bases do pop-vibe-negativa com BAD ROMANCE e suas vocalizações aterrorizantes, cuja evolução coroa, em BORN THIS WAY, o início de JUDAS. JU-DA! JU-DA-A! JU-DA! GA GA!
Menção de honra pra SCHEIßE, cujo trecho em alemão valoriza muito a composição da Gaga. Ela devia sempre cantar em línguas que eu não entendo.
É com o lançamento de ARTPOP, em 2013, que o negócio começa a desandar.
Nem chega a ser um álbum ruim — eu gosto bastante de VENUS e do finalzinho de G.U.Y., que parece uma música do Crystal Castles —, mas a repercussão negativa traumatizou a Gaga de um jeito que ela demorou SETE ANOS a soltar outro álbum dançante. Até aí tudo bem; o problema é que ela aproveitou esse meio-tempo pra cometer crime de guerra em outros gêneros. (Os próximos discos, um no country e outro no jazz, são o equivalente musical dos Estados Unidos testando bomba atômica na Fenda do Biquíni.)
CHEEK TO CHEEK (2014) e LOVE FOR SALE (2021), ambos com Tony Bennett
Muito fã da Lady Gaga ignora CHEEK TO CHEEK e LOVE FOR SALE por não curtir jazz. Engraçado!, considerando que o meu enorme carinho pelo jazz me faz gostar desses álbuns ainda menos.
O problema não é a seleção perfeitamente conservadora de clássicos, regravada à exaustão por gente tipo Ella Fitzgerald e Frank Sinatra (nomes com quem eu, no lugar da Gaga, certamente não gostaria de ser comparada), nem o coitado do Tony, que tá só feliz de tar ali. É a Gaga mesmo.
Com todo respeito, ela não tem o que é preciso. A voz dela não preenche uma produção minimalista que nem a do jazz. Falta textura, falta entonação, falta o básico. Em ANYTHING GOES, primeira faixa de CHEEK TO CHEEK, ela parece uma adolescente se esgoelando no musical da escola:
Isso não é dizer que a Gaga não sabe cantar — eu não tenho pulsão de morte suficiente pra afirmar uma coisa dessas em público. Só não é a cena dela. O jazz exige uma sutileza, uma coisa meio brincalhona, um brilho no olhar… toda uma caixa de ferramentas que não aproveita o potencial da Gaga. Ela não é boa nisso do mesmo jeito que o Sinatra não seria bom gargarejando em cima de um electro house fudido. Cada qual com seu cada qual.
Tendo dito isso, a intenção da Gaga em regravar canções como I GET A KICK OUT OF YOU era a de chamar atenção pros clássicos do jazz, e isso ela certamente conseguiu; pausei o álbum e fui direto ouvir a mesma música na versão que eu gosto, da Dinah Washington. Missão cumprida!
JOANNE (2016)
Epidêmica a fase country na carreira das popstars americanas. Ano passado mesmo a Beyoncé lançou o esquecível COWBOY CARTER, tão ruim que eu tirei um momento pra criticar o álbum no meio de um post sobre o Japão.
JOANNE não é muito melhor. Faixas como A-YO fazem a ponte entre um country-pop estilo Meghan Trainor e o tipo de música que você espera ouvir numa propaganda de cartão de crédito. Outras, como PERFECT ILLUSION, funcionam simplesmente por não pertencer ao country de forma alguma. Aliás, quase todos os pontos altos do disco fogem do gênero ao qual ele supostamente pertence. Talvez seja o caso da Gaga migrar pro pop um dia.
Pra não dizer que NADA funciona, SINNER’S PRAYER é bem gostosa — e a mais country do álbum. Talvez o problema seja que a Gaga não tenha se comprometido o suficiente com o gênero. Ficou num meio-termo esquisito. Botasse um banjo aí, uma gaita… um capim no canto da boca… vamo entrar no personagem!!
Um adendo: HEY GIRL — que de country só tem o chapéu — é um dos feitos mais admiráveis que eu já vi no mundo da arte. Não que a música em si seja incrível (é ok!)…. o que impressiona é a Gaga ter convidado pro próprio álbum uma voz muito melhor que a dela. Foi só a Florence começar a cantar que eu caí no riso. Haja humildade!
CHROMATICA (2020)
Eu AMO o CHROMATICA. Amo. É o melhor que ela tem a oferecer desde THE FAME. RAIN ON ME (cover de CHUVA DE PRATA, da Gal) tocou quinhentas vezes aqui em casa, SOUR CANDY me arrepia toda, e 911 é tudo que eu quero da Gaga: uma produção tão pesada que mal dá pra ouvir a voz dela. Que jazz o quê, vamo dançar!!! Joga ketchup nessa porra!!!!
Até as mais fracas do álbum são boas. PLASTIC DOLL não se deixa derrotar pelo típico feminismo-de-Instagram da Gaga, e eu prefiro ouvir FUN TONIGHT (PABLLO VITTAR REMIX) do que a melhor de Joanne. REPLAY, largada no fim do álbum perto do feat com o Elton John, talvez seja a melhor de todas: foi nela que eu dei play depois de terminar a discografia. Imagina uma música da Lady Gaga tão boa que eu ouço sem ser paga pra isso!
Claro que, alarmada pela qualidade do próprio trabalho, Gaga deserdou o álbum e finge que ele não existe. Azar o meu, o seu e principalmente o dela. Mas tudo bem, porque vem aí mais uma grande ideia da nossa popstar: um álbum de rock! Vamos ver o que eu tenho a dizer a respeito.
MAYHEM (2025)
Poxa galera, acabou o espaço do email. Vejo vocês semana que vem!
oi laurinha eu adoro o artpop ela estava tao artística e não obstante pop
fiquei impressionado com o quanto você ainda teve a dizer sobre o mayhem