Uma das melhores passagens de Shakespeare — gostou do jeito que esse texto começa? — rola quando Henrique de Bolingbroke depõe Ricardo II do trono.
Vencido, Ricardo pede um último favor a Henrique, e ouve dele um Diga, formoso primo. Nisso Ricardo SURTA e responde algo que pode ser traduzido, aproximadamente, como: FORMOSO PRIMO? Tou melhor que antes! Quando eu era rei, só meus súditos me elogiavam. Agora que eu virei súdito, quem me elogia é o Rei!
Não é novidade agora, e já não era novidade no século XVI, que o pior lugar pra se estar é no topo. Ainda assim, cerca de duzentos bilhões de documentários sobre o outro lado da fama são lançados todo ano, sempre com algum cantor, ator ou comediante descobrindo que conquistar seu sonho é a pior coisa que pode acontecer com alguém.
A qualidade desses documentários é mais ou menos a mesma; o que varia é o seu interesse no famoso em questão.
CONAN O’BRIEN CAN’T STOP (2011), por exemplo, virou meu preferido do gênero simplesmente porque eu não odeio o Conan. Filmado na época em que ele perdeu o posto de apresentador do Tonight Show pro Jay Leno — perfeitamente normal não saber quem essas pessoas são —, CAN’T STOP é o retrato íntimo de um homem levado à loucura pela própria fama. Já SE EU FOSSE LUISA SONZA (2023), retrato íntimo de uma mulher levada à loucura pela própria fama, conseguiu me fazer largar na metade um trailer de dois minutos.
LARISSA: O OUTRO LADO DE ANITTA (2025) é um bom meio-termo, no sentido de que eu odiei o filme mas não o bastante pra não conseguir terminar.
Vi duas vezes, aliás: uma chapada e rindo bastante, outra sóbria e prestando atenção.
Da primeira, notei mais as bizarrices — como a alegação de que Em abril de 94, enquanto todo mundo só falava da Copa do Mundo, Larissa comemorava um ano de vida. Corrijam-me se eu estiver errada, mas em abril de 94 ninguém falava da Copa do Mundo, porque a Copa do Mundo é em junho. Na dúvida — eu que sou TÃO novinha, tão menor de idade —, resolvi consultar um ancião:
Não que isso venha ao caso. Cronologia nenhuma resiste à força gravitacional de Anitta, que reorganiza em torno de si toda a história da música popular. Quem é a brasileira mais famosa do mundo desde Carmen Miranda, segundo Anitta? Anitta. Quem foi a primeira cantora do Brasil a atingir o #1 Global no Spotify, coisa que nem Carmen Miranda fez? Anitta.
Tudo que Anitta conquista é a coisa mais importante que um brasileiro já fez. Foi ela quem ajudou a descriminalizar o funk no Rio de Janeiro, o que é especialmente difícil de se fazer com algo que nunca foi crime. Foi ela quem “botou Honório Gurgel no mapa”; e por aqui não se fala em outra coisa!
— Quando ela nasceu, continua o documentário, ninguém sabia que Larissa ia se transformar em Anitta, a maior popstar da história do Brasil.
Ao contrário das demais popstars, predestinadas à fama pelo oráculo de Honório Gurgel, Anitta nasce desconhecida. Daí a importância de revisar o passado, implantando indícios de grandeza. Que graça teria dizer que Larissa nasceu em 93, logo antes da estreia da TV Colosso? Melhor mudar o recorte histórico e apontar que a cantora nasceu mais-ou-menos perto de um título mundial — e pode ou não ter marcado um pênalti pelo Brasil. Vamos deixar em aberto.
Isso da Copa é apenas uma entre várias manobras adotadas pelo documentário pra te convencer de que Anitta é uma pessoa importante envolvida em coisas importantes. Outra manobra, das menos sutis, foi botar N. Sra. de Honório Gurgel pra SUBIR O EVEREST, onde “não dá pra ficar no topo por mais de oito minutos.”
Até aí tudo bem. O que a produção não esperava é que Anitta fosse DESISTIR da escalada no primeiro dia, devido a ser também o primeiro dia de trilha que ela fez na vida. (Deixo nas mãos do leitor o cálculo moral de uma produção Netflix levar ao Everest alguém que nunca fez trilha.)
Coitada, chegou nem na parte da montanha que tem neve; pediu um helicóptero de resgate como quem pede um uber e meteu o pé. Foi aí que ela disse uma coisa que eu só digeri assistindo o filme de novo: que, se ela continuasse subindo, seria pra satisfazer a expectativa…
Eis aí, finalmente, um novo ângulo pro coitadoc de famoso: a celebridade oprimida pelo próprio documentário.
Mês que vem comemoramos — plural generoso — SEIS anos do lançamento de KISSES, álbum que inaugurou a campanha de conscientização nacional sobre os vários lados de Anitta.
Cada faixa do KISSES representa uma entre 10 personalidades da cantora, descritas como “mulheres completamente diferentes” pela matéria ANITTA DEIXA SEIOS E BUMBUM À MOSTRA EM DIVULGAÇÃO DE NOVO ÁLBUM
. Pudera. Em Atención, ela se afirma independente; em Sin Miedo, ela faz o que dá na telha; em Juego, ela não deve satisfação a ninguém. Água e óleo.
Já o disco seguinte, VERSIONS OF ME, compacta a multifacetada Anitta em apenas 6 variantes. Lançado em 2022, VoM abandona o critério da personalidade e revisita os diferentes rostos de Anitta, moldados por cirurgiões, cabelereiros e maquiadores progressivamente mais ambiciosos. “Mesmo depois de milhões de plásticas... meu interior permanece o mesmo,” observa a cantora (não sem alguma melancolia).
Curioso, então, que o conceito de LARISSA: O OUTRO LADO DE ANITTA seja apenas dividi-la ao meio, distinguindo criador e criatura. Caso de PROCON isso aí— em 2019 um álbum entregava dez Anittas, e agora um filme só entrega duas?
Nada contra. Com essa enxugada, nosso icosaedro do pop deixa pra trás a redundância de KISSES e a dismorfia de VERSIONS em favor de uma elegantíssima dualidade. Coisa de clássico — médico-e-monstro, Larissa-e-Anitta, Pagliacci-e-palhaço. Longe do tom divertido dos álbuns, LARISSA retrata uma mulher condenada a viver à sombra do seu alter ego.
Parte do problema é o documentário em si.
Logo antes da cena no Everest, Larissa desabafa que costumava ter controle de quando virava Anitta, mas que agora se pega virando Anitta o tempo todo, e que não aguenta mais viver um personagem. Nesse discurso meio Bruce Banner das ideias, entra um cara chamado Felipe Britto, que até agora não tinha aparecido na frente da câmera, e diz que ela não pode desistir.
Segundo minha pesquisa independente (pois jornalista), Felipe trabalha na GINGA PICTURES, produtora do documentário — e esse “não pode desistir” provavelmente se refere à participação da Larissa no filme.
Se eu tivesse que chutar, eu diria que o contrato da Ginga com a Netflix punia a não-entrega das gravações até tal data com uma multa astronômica. Tanto que depois do Everest vem um letreiro enorme escrito UM ANO DEPOIS, e Anitta reaparece de cabelo grande e rosto novo. Capaz que ela topou voltar a ser filmada faltando um mês pra obrigação contratual explodir que nem uma bomba na cabeça dela.
Ou isso ou alguma outra coisa! Vamos pensando. O importante é que, nesse meio-tempo, Larissa cuidou da cabeça com o melhor tratamento que o dinheiro pode pagar.
Um ano depois do Everest, Larissa retorna ao documentário, devidamente curada de sua doença mental.
Praticante de yoga, medicada e terapeutizada, a Nova Larissa cultiva tranquilidade pra colher paz. Antigamente eu organizava festa pro povo ficar bêbado, pegar gente… admite Larissa; agora eu organizo encontros de evolução espiritual, pra todo mundo virar um ser de luz.
Até a Mansão Anitta passou por reforma, com direito a tenda de meditação, cristal energizante, mandala pra “rituais” e um sincretismo religioso de botar medo em modernista.
Aliás, falando em Mansão Anitta: duas semanas atrás, a Casa Vogue postou no youtube um tour em que a Anitta passa vinte minutos com o mamilo à mostra, falando coisas como eu acho que o futuro do mundo são as crianças.
No dia seguinte, o canal do Architectural Digest subiu um vídeo idêntico, com a Anitta usando a mesma roupa e falando as mesmas coisas, só que dessa vez em inglês e, por alguma razão, espanhol.
Esse par de vídeos é bibliografia obrigatória pra melhor compreensão do documentário; especialmente a parte do Quarto.
No tour da Mansão Anitta, um dos cômodos que ela apresenta é claramente o quartinho do sexo. Parede escura, beijo em neon, símbolo de masculino e feminino (Anitta radfem confirmada??), uma cama gigante e mais nada.
Até aí tudo bem. Eu também construía um quarto-do-sexo se tivesse mais de mil m² de terreno pra preencher, uma vez cruzado o limite razoável de quanta mesa de sinuca cabe numa única casa. Engraçado mesmo é ver a sexualidade RASA, quase inofensiva, que esse quarto exprime.
Pra uma pessoa que construiu a reputação inteira em cima da própria libido, essa decoração com tapete de zebrinha e cuck chair de pelúcia parece tão… sei lá. Desanimada? Se eu visse uma foto do Quarto fora de contexto e tivesse que chutar daonde veio, meu primeiro palpite seria puteiro de novela das seis, não antro carnal de popstar milionária.
É um tesão esquisito, higienizado. Uma putaria meio Tok&Stok. Pra uma pessoa qualquer seria até ok, vá lá, mas na casa da ANITTA? Você entra esperando um filme do Pasolini e dá de cara com a adaptação Netflix.
Mas aí é que tá: essa confusão entre Larissa e Anitta tem tudo a ver com sexo. Os caras que a Larissa leva pra casa entram em pânico de tanto medo de decepcionar a Anitta.
Não é à toa que Larissa começa a se distanciar dessa imagem hipersexualizada na sua vida pessoal, como que criando um fosso entre ela e Anitta. No próprio vídeo da Casa Vogue ela comenta que o Quarto é uma homenagem a quem ela foi um dia.
Mais pro finzinho do filme, bêbada, Larissa exclama Acho que quero transar com alguém! Vou arrumar. Sai pulando na areia, animada. Aí hesita, para. Fica séria. Muda de ideia. Eu quero… como é que fala? Sem ser transar? Quero TER UMA RELAÇÃO ouvindo um mantra hoje. E segue andando.
A sequência final do documentário tá entre as mais deprimentes da história do cinema.
Sentada na praia de São Conrado com uma lata de Skol Beats (certamente não a primeira), Larissa vira a noite desabafando pra câmera — empunhada pela amiga — sobre o grande vazio que sente no peito, vazio esse que sucesso nenhum conseguiu preencher.
Chorando com um sorriso congelado no rosto, ela corre pra água, volta, faz perguntas, ignora as respostas e assiste ao amanhecer improvisando um discurso de coach. Eu sou muito feliz! Eu decidi ser muito feliz, porra!
Breve pausa. Vira pra câmera. Você não pode ser feliz também?
E por que não tá sendo até agora?
Certa ela de presumir que a audiência desse documentário não é feliz. Eu com certeza não estava, depois de assistir, e continuo não estando, sendo obrigada a escrever a respeito.
Ainda assim, seria desonesto da minha parte desmerecer o vazio que atormenta Larissa. Pra alguém tão preocupada em ser feliz depois da fama, ela parece não perceber que já não é feliz agora.
Boa parte do documentário foi narrada pelo diretor Pedro Cantelmo, primeiro namorado de Larissa, convocado por ela a capturar imagens dos bastidores. Que triste ter que voltar à adolescência pra encontrar alguém capaz de distinguir seu personagem de você. Claro que uma pessoa como eu não faz ideia do que é perder o controle da sua vida pra um alter ego — silêncio, por favor —, mas assistir a coitada receber a notícia do câncer do pai por telefone, no carro, a caminho de conhecer a própria estátua de cera, te dá uma boa noção do que é ser desumanizada pelo sucesso.
O sexo dela não é sexo, o amor dela não é amor, a espiritualidade é uma série de meditações kundalini conduzidas por uma profissional cobrando dois mil reais a hora. Não há Larissa propriamente dita. Tudo na vida dela é uma série de distrações e estímulos destinados a manter são o corpo em que vive Anitta.
Espero de coração que essa mulher encontre alguma paz, com ou sem fama, e aprenda a reconhecer que Anitta é só um exagero do que já vive dentro dela. Ou isso ou ela se rende e vira Larissanitta de uma vez. O show não pode parar!
entrei pra rir e fiquei deprimido
O quarto do sexo da Anitta é como eu imaginaria ser um covil de libertinagem, fluídos e grunidos selvagens se tivesse 11 anos e contato com arquitetura exclusivamente pelas passagens no Habbo Hotel.