Quinhentas temporadas do CASAMENTO ÀS CEGAS deixaram meio cansado esse formato de duas pessoas que não se conhecem descobrindo que é má ideia casar com alguém que você não conhece.
Pra você ter ideia, a taxa de separação entre os casados-às-cegas nas edições brasileiras é de 85%. Qual a graça em ver dois estranhos brigando por uma relação que não existia semana passada, e que não vai existir semana que vem? Tem nada em jogo. Acabando o casamento, tudo volta ao normal. Vira história pra mesa de bar. Lembra a vez que eu me apaixonei por um dentista na Netflix?
Mais interessante é a franquia O ULTIMATO, que procura casais com anos de ressentimento acumulado e dispostos a proporcionar um espetáculo muito maior que o início do amor: o fim.
Seis casais chegam ao ULTIMATO com um impasse — uma pessoa quer aliança no dedo, e a outra, não. A fim de testar essa decisão e ver pra qual lado a corda arrebenta, os casais se separam e cada pessoa entra num casamento-teste com algum estranho atraente. Depois de três semanas, o casal se junta de novo e avalia se quer mesmo casar, ou se é hora de dar tchau. Tudo isso, é claro, exibido ad eternum na Netflix em troca de meio salário mínimo.
Protagonizada por héteros esquecíveis discutindo tópicos como ovo em conserva, a primeira temporada d’O ULTIMATO deixa muito a desejar. É no spin-off, ULTIMATO: QUEER LOVE, que a coisa engata.
Tanto que a maior honraria da crítica audiovisual brasileira — o selo de aprovação Respondendo — surgiu num post sobre a estreia de QUEER LOVE, que eu na época descrevi, apelando à minha característica sensatez, como “uma das melhores temporadas de qualquer programa na história da televisão”.
Não era pra menos.
O elenco de QUEER LOVE inclui um casal que terminou mais de cinquenta vezes em dois anos; uma loira que reclama com a própria mãe, na frente de três câmeras da Netflix, sobre alguém ter dedado a namorada dela; e uma querida que é pedida em casamento (o objetivo dela no programa!), aceita e imediatamente se declara… pra outra mulher, que ela conheceu mês passado.
Difícil superar uma estreia dessas — e a segunda temporada certamente não conseguiu. Onde foi que o ULTIMATO deu errado?
(Spoilers à frente!)
KYLE & BRIDGET
No site oficial do ULTIMATO, cada participante ganha uma bio curtinha com idade, signo e um fun fact.
No caso da Bridget (à direita), o fun fact em questão é que ela é faixa-preta. Normal. Outras mulheres botaram Sou canhota, Gosto de dançar em festas, etc. Já o da Kyle é que, Quando criança, eu conseguia recitar de cabeça todas as raças de cachorro da Enciclopédia de Raças de Cachorro. (São quatrocentas.) Pena que não consigo mais.
Num programa sério, como o Big Brother Brasil, essa curiosidade teria eliminado a Kyle já na primeira peneira do elenco. A última coisa que você quer num reality de namoro é uma pessoa com capacidade de interpretação de texto — e o fato de que a Kyle selecionou, como fun fact dela, algo genuinamente divertido (em vez de Sou canhota!) prova que ela tá no lugar errado.
Não deu outra: Kyle evitou se envolver com outras mulheres, manteve o respeito com a namorada e saiu do programa noiva. Um show de bom senso! E também uma grande perda de tempo. Melhor seria se essas duas tivessem feito um mês de terapia em casal e se resolvido longe da minha tevê.
Considerando que Sou faixa-preta não é lá a trivia mais interessante do mundo, as chances da Bridget no ULTIMATO eram muito melhores. Rola até um breve triângulo amoroso entre ela, Kyle e Pilar no início da temporada, com a Pilar perigando virar marmita de casal.
Nada contra! Queria mesmo era ver as três quebrando as regras do programa e saindo juntas, braços dados, um trisal em direção ao horizonte. Infelizmente, Pilar escolhe a Kyle, cujo autocontrole não permite nada além de um único beijinho; e a pobre da Bridget fica com a Ashley, cujo nome eu não decorei até o oitavo episódio.
BRITNEY & A. J.
Quando Bridget percebe que o triângulo Bridget-Kyle-Pilar tá virando uma linha reta, ela muda de rumo e passa a focar mais na A. J., que vinha demonstrando interesse de forma sutil.
Determinada a fazer o plano B engrenar apesar das constantes tentativas da A. J. em falar putaria, Bridget comenta o quão importante é você se sentir livre pra conversar sobre sexo sem constrangimento — o que pode parecer um sinal verde, até você se dar conta de que educação sexual é um dos assuntos menos eróticos que existem.
Esperta ela. Ainda assim, A. J. dá um jeito. Ante a afirmação da Bridget de que os pais não conversaram com ela sobre sexo, A. J. adianta que a mãe é super incisiva com isso, e que inclusive costuma fazer perguntas bem diretas às namoradas que ela traz em casa.
Pro azar da Bridget, o triângulo amoroso do qual ela escapou era bem menos complexo do que o novo e cruciforme polígono-amoroso da A. J., envolvida com Marita, Marie e com a própria Bridget ao mesmo tempo.
Desmascarada, A. J. toma um esporro duplo de Marita e Bridget e acaba optando por Marie (à direita), a única que não se voltou contra ela — e também a mais sem-graça das três.
Enquanto isso, a namorada de A. J., Britney (não confundir com Bridget), também é rejeitada por sua escolha original, a sapatoníssima Mel (não confundir com Marita ou Marie). Desconsolada, Britney liga pra A. J. no meio da madrugada, implorando pra vê-la de novo… e as duas burlam as regras do ULTIMATO pra se encontrar escondido. Uma vez? Duas vezes? Não. Todos os dias.
Ótimo pra Britney! Terrível pra Marie, abandonada à própria sorte pela A. J.; e pior ainda pra A. J., que chegou de pau duro à toa.
ASHLEY & MARITA
Entre os fãs de SURVIVOR (reality que deu origem ao NO LIMITE), o posto de Melhor Vilão tá longe de ser unânime.
Jonny Fairplay (ou Jonny Jogo-Limpo), participante da edição de 2003, recebeu na ilha a visita de um parente avisando que a avó dele tinha morrido — mentira que ele mesmo arquitetou, antes de entrar no programa, pra ganhar a simpatia dos confinados. Qualquer outro reality prontamente imortalizaria Jonny no seu Hall da Fama de Demônios. Em SURVIVOR, ele não entra nem no top 10.
Os grandes vilões de SURVIVOR têm excelentes repertórios. Jogadas brilhantes, traições espetaculares, seios empinados, biquinhos duríssimos. Mas a vilã mais interessante — pelo menos pra mim, que sou do contra — me interessa justamente por ter passado em branco.
Kelly Shinn, também conhecida como Purple Kelly, desistiu da 21ª edição na reta final. Não bastando a desistência (que já fode com o calendário do programa), ela ainda convence uma amiga a pular fora junto, dobrando o tamanho do problema. Isso emputeceu TANTO a produção, mas TANTO, que a solução foi drástica: sujeitar a audiência a uma espécie de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.
Kelly foi apagada da edição.
Pra você ter ideia, o primeiro confessionário da Kelly vem só no episódio SETE, e é um recorde; ninguém nunca tinha passado tantas semanas em SURVIVOR sem ganhar um tempinho de tela. (Lembrando que essa era a VIGÉSIMA PRIMEIRA temporada.)
A coitada só aparece quando é inevitável. Ao fundo de uma briga, ou no meio de uma prova. Mal se ouve a voz dela. Tanto que o apelido Purple Kelly vem das duas únicas coisas que se sabem sobre ela: que ela usava uma mecha roxa no cabelo, e que ela se chamava Kelly.
Desde então, não é incomum ver um fã de reality se referir a um personagem esquecido no churrasco como “purple edit” — ou seja, vítima da mesma borracha que passaram na Purple Kelly. Seja por conflitos com a produção ou por não render entretenimento, a pessoa aparece TÃO POUCO no programa que é como se ela nem tivesse participado. Não fez diferença nenhuma.
No ULTIMATO, essa pessoa é a Ashley.
Dotada de um carisma negativo, Ashley pouco fala e pouco faz. O figurino é de cores neutras, o cabelo é tamanho médio e o rosto dela parece um retrato-falado incompetente, daqueles que você já começa a esquecer antes de tirar os olhos do papel.
Nem como figurante ela é usada. Ninguém parece se interessar por ela; a própria namorada, Marita, diz se sentir vazia na relação. Dá até pena. O grande drama da Marita é sentir que a Ashley não é especial o suficiente pra casar. O grande drama da Ashley é que a Marita tá certa.
Marita, por sua vez, é uma mulher fascinante. Viciada em amar, ela expressa várias vezes que procura uma esposa romântica, e que merece mais do que recebe da Ashley; mas o que ela entende por “romance” varia muito de um dia pro outro.


No primeiro episódio, Marita (não confundir com Marie!) revela pra Marie (não confundir com Marita!) que o encontro perfeito envolveria uma caça ao tesouro — o tipo de atividade que você programa quando é professora substituta de inglês pra turmas de 9 a 11 anos.
Logo em seguida, Marita confessa pra A. J. que escreveu uma história de 98 páginas sobre como eu e Ashley nos conhecemos. Aí já é uma coisa mais puxada pra fanfic, pro Wattpad. Outra faixa etária. Por fim, no casamento-teste com a Britney (ex da A. J.!), Marita admite que tudo o que ela queria eram flores e um jantar à luz de velas. SÓ? E a INÚTIL da Ashley não conseguia nem isso??
MARIE & MEL
Britney (não confundir com Bridget) só entrou no casamento-teste com a Marita porque foi rejeitada em outro triângulo amoroso — as delícias da análise combinatória queer! — entre ela, Dayna e Mel.
Na primeira interação entre as duas, Dayna pergunta pra Mel se o nome dela é apelido de Melanie, e ela responde que não, é Melissa… mas também Melodrama. Porque eu sou muito dramática.
Em qualquer outro cenário, Melissa seria então dispensada, tomando o ghosting mais justificado da história dos ghostings. No ULTIMATO, onde a escolha é escassa e as participantes são loucas, Dayna decide se apaixonar.
E é paixão mesmo. Mel e Britney se conectaram por motivos super racionais, como o empreendedorismo das duas (Britney abriu uma clínica de estética, Mel comanda um food truck) e a necessidade que elas têm de independência e espaço. Já Dayna não parece tão interessada em trabalho — ou em saúde mental.
Até aí tudo bem. Normal se apaixonar por um estranho na televisão. Normal também ameaçar esse estranho com destruição de propriedade privada. O que me pega é que, depois de voltarem às suas parceiras originais (Dayna com Magan, Mel com Marie), as duas fingem que NADA aconteceu.
Nada. Não se apaixonaram, não trocaram juras de amor e, o mais absurdo, não mergulharam de cabeça na buceta uma da outra.
Rola todo um quiproquó sobre isso no Reencontro, quando a Dayna esclarece que elas não transaram porque, tecnicamente, cada pessoa tem a sua definição de não-transar, e a dela inclui várias coisas que eu e você consideramos “sexo”, como transar e fazer sexo.
Talvez pra você isso pareça manipulação, gaslighting, etc. Eu, que sou filósofa diplomada*, entendo nas palavras de Dayna uma lógica paraconsistente sofisticada, em clara afronta ao princípio da não contradição.
Uma coisa pode sim ser o contrário dela mesma. Quem sou eu pra provar que uma flecha está de fato em movimento, se a cada instante ela parece imóvel? Quem sou eu pra provar que essas duas se dedaram, se a cada instante o dedo parece inerte? Transar e não transar é a mesma coisa. Obrigada, Dayna, pelo esclarecimento.
Quem não ficou tão grata assim foi a Marie, que chegou no Reencontro pronta pra surtar — e encontrou uma Dayna preparadíssima, tomando controle da narrativa. Foi mal aí, me sinto péssima, a gente não transou mas deve ser difícil mesmo de ver, meu coração dói por ti! Coitada da Marie. Encolheu na poltrona e passou o resto do Reencontro (e dos próximos cinco anos, imagino) em depressão.
Uma pena. Logo ela, que tava tão animada pro casório-teste com a A. J. … as duas tinham tanto em comum!




DAYNA & MAGAN
Magan (não confundir com Marita, Mel ou Marie) chega no ULTIMATO com uma das maiores caras de coitada que eu já vi. Parece que ela tá indo pra forca.
Ao contrário das outras participantes, que se inscreveram por motivos como eu quero muito casar! e eu não quero casar de jeito nenhum!, Dayna e Magan já teriam casado se não fosse pela parentada libanesa homofóbica da qual Magan esconde seu relacionamento. Coisa séria.
Compreensível, então, que a Magan não se encante com essa história de azaração na TV. Não dá pra botar um biquininho e fazer a festa se as opções que você enfrenta na vida são heterossexualidade compulsória ou ser expulsa da família. Chega a ser cruel expor uma situação delicada dessas na Netflix, o canal que produz vinte filmes da Jennifer Lopez por ano.
Ainda assim, Magan se dispõe a conhecer Haley, cônjuge da Pilar (do primeiro triângulo amoroso! Lembra? Kyle-Bridget-Pilar? Faz tanto tempo…), e autoproclamada food scientist.
Cientista de alimentos é uma profissão real, e não tem nada particularmente estranho ou engraçado em ser uma food scientist, mas por alguma razão eu fiquei obcecada com isso. Toda vez que a Haley falava ou fazia alguma coisa, eu virava pro Renan — que assistiu a série comigo! Obrigada! —, batia o dedo na têmpora e sussurrava: é porque ela é food scientist.
Desdobrado naturalmente, sem pressa, sem doença mental, o caso da Magan com a Haley é o mais emocionante que eu já vi num reality — especialmente pelo jeito que termina. Quando Dayna nega ter se envolvido com a Mel, Magan entra na mesma marcha, e fala na cara da Haley que nunca sentiu nada por ela.
Fosse mais imatura, Haley reagiria com escárnio, dizendo que ela também não sentiu nada por ninguém; mas ela faz o contrário. Abre o jogo com a Pilar, explica que se apaixonou, que transou sim, que teve o coração partido. Chora a perda da Magan, chora a confusão e a vergonha de ser rejeitada.
É lindo. E é porque ela é food scientist.
HALEY & PILAR
A história da Pilar é bem parecida com a da Magan: ambas têm medo de se casar por conta das famílias. No caso da Pilar, a família já até se adiantou e não fala mais com ela.
Mas ao contrário da Magan, que aceita o ultimato com relutância, Pilar entra em campo pronta pro jogo. Se envolve com o casal Kyle-Bridget, escolhe a mais atraente e tasca um beijão nela. Vamos viver o que há pra viver!!!
Era pra Pilar ter se divertido, feito uma suruba, aprendido umas lições pelo caminho… sei lá qual o intuito desse programa. Seria o justo. Em vez disso, ela foi rejeitada pela esposa-teste, aí voltou com a namorada original e foi rejeitada de um jeito infinitamente pior.




Imagina você ouvir, da boca da mulher com quem você namora, que ela só tá com você porque foi rejeitada por outra? Que você é o prêmio de consolação? Agora imagina, depois de tudo isso, você PEDIR ESSA MULHER EM CASAMENTO? Agora imagina essa transição acontecendo em MENOS DE UM MÊS? Agora imagina tudo isso PASSANDO NA NETFLIX PRA TODA SUA FAMÍLIA HOMOFÓBICA VER?
Pilar não foi a única injustiçada. Se você parar pra pensar, todo mundo meio que se fudeu. Uns se acovardaram na frente do amor, outros casaram com a pessoa errada.
E tudo isso por conta de uma única decisão…
EFEITO BORBOLETA
…da própria Pilar.
Pensa comigo. Quando Pilar escolhe a Kyle, resta à Bridget se envolver com A. J., o que leva à descoberta de que A. J. quer pegar todo mundo. Decepcionada, Bridget expõe A. J. pra Marita e as duas a confrontam, levando A. J. a mudar de ideia e escolher Marie como esposa-teste.
Quando Britney é rejeitada pela Mel, ela implora atenção da A. J., que negligencia Marie (coisa que ela já tava super disposta a fazer). Estressada, Marie explode pra cima da Mel, o que assusta Dayna, que então atrai Magan de volta com a sua buceta selada a vácuo, e Magan esquece que a Haley existe. E aí dá tudo errado.
Mas e se a Pilar escolhesse a Bridget?
Sendo escolhida pela Pilar, Bridget não teria motivo pra se envolver com A. J.; tampouco confrontá-la. A. J. então escolheria Marita, e Marie sobraria pra Ashley — que não iria abandoná-la que nem a A. J. porque a ex dela, Marita, não tá nem aí.
Satisfeita com esse arranjo, Marie não teria motivo pra surtar pra cima da Mel por conta da relação dela com a Dayna. Sem esse peso, Mel investe e conquista Dayna, liberando a Magan pra encontrar o amor com a Haley.
Ao fim do experimento, Pilar, Britney e Kyle formam um lindo trisal; A. J. e Britney se casam, e adotam Marita como animal de estimação; Ashley é esquecida pela produção num buffet de frutos do mar e Marie casa com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história.
* Ainda não busquei meu diploma na secretaria.
Obrigado por postar nesse horário Laurinha ja ia ter que começar a trabalhar
necessário comentar que no último parágrafo confundiu-se Britney com Bridget