No auge do sucesso como garota de programa¹, Andressa Urach ganhava mais dinheiro do que ela seria capaz de gastar. "Para ter um animal de estimação,” confidencia, “investi seis mil reais em um sagui domesticado."
Perfeito o uso do verbo investir. Não só ela gastou seis mil num sagui (um animal que dá de graça em árvore) como ainda considera o macaco um ativo financeiro. Longe de mim julgar, claro; pra alguém que tentou convencer um cirurgião a cortar os dedos dos pés dela a fim de caber em sapatos menores, até que um sagui não é mau negócio.
Ideia pior é o que não falta. Em 2011, enquanto complementava a renda de GP trabalhando como assistente de palco no LEGENDÁRIOS, Andressa chamou a atenção de um médium querido pelos famosos. “Você pode ir morar comigo,” propôs. “Se quiser, leve seu filho para passar um tempo lá. Posso até casar com você.”
Posso até casar com você! Palavras que toda mulher sonha em ouvir. Foi lá a Andressa morar com o médium, de filho e cuia, e logo descobriu que ele não era médium coisa nenhuma. O velho “atendia seus clientes por telefone e, mentindo, contava estar arreando despachos e fazendo previsões enquanto assistia a filmes comendo pipoca.” Frustrada, Andressa abandona o charlatão, que faz um último apelo: “Espere, não vá. Você não quer participar do Big Brother? Eu conheço o diretor do programa. Eu vou te colocar lá dentro.”
Outro cliente, um “famoso galã de novelas da TV Globo,” pagou oito mil reais em espécie por uma tarde com Andressa. Desconfiada, ela pergunta ao intermediário qual motivo “um dos homens mais cobiçados do Brasil” teria pra comprar o que ele facilmente consegue de graça. “Ele é casado,” foi a explicação; “e tem umas taras diferentes.”
De fato. Chegando ao motel, Andressa suspira com a beleza do ator e deita na cama de bom grado, até que o galã começa a “morder minha cabeça sem parar.” Nem fica claro se eles transaram; parece que ele passou duas horas só abocanhando a moleira da coitada. “Terminei a relação com o crânio cheio de marcas de dente.” Ainda bem que o nome ficou no sigilo!
Histórias ainda mais high-profile que essa recheiam a primeira biografia da Andressa, MORRI PARA VIVER — MEU SUBMUNDO DE FAMA, DROGAS E PROSTITUIÇÃO (2015). Tá tudo lá: o affair com Cristiano Ronaldo, o falso namoro com um cantor sertanejo, os cinco meses em turnê como Latinete².
Nem Ayrton Senna escapa. O nome de guerra Ímola, adotado por ela no início da carreira, vem da cidade italiana onde o piloto morreu — dando a entender à clientela que as curvas da nossa autora são igualmente perigosas.
Questão de marketing.
Não é incomum que uma biografia estabeleça, antes de qualquer coisa, a relevância do biografado. O leitor médio folheia um título por oito segundos, de pé, na livraria mais próxima da praça de alimentação, e é nesses oito segundos que o autor precisa fisgá-lo. Quando Benjamin Moser descreve Clarice Lispector como “uma das figuras míticas do Brasil,” cujo nome “empresta classe a condomínios de luxo,” a mensagem é clara: terias coragem de devolver à estante a mulher que impressionou não um, mas DOIS síndicos no Guarujá?
Natural, então, que Andressa Urach receba o mesmo tratamento.
MORRI PARA VIVER não poupa esforços em posicionar Andressa como uma figura pública. Várias páginas do livro (mais de 10, na versão ebook) são dedicadas a recortes de matérias internacionais, aparentemente colecionados pela própria autora:
"No principal site de buscas da internet,” anuncia a introdução, “o termo Andressa Urach aparece mais vezes que o nome da escritora Margaret Mitchell, autora do best-seller E o Vento Levou.”
É verdade. Margaret Mitchell, falecida em 1949, pouco figura na Gazeta do Povo. Já Andressa protagoniza toda semana dezenas de manchetes por aí, como “Andressa Urach choca ao anunciar gravação picante com portador de doença rara,” ou “Andressa Urach revela que já se envolveu com ex-sogra: ‘Vingança’”.
Quem não parece muito convencida da relevância de Andressa Urach é a própria Andressa. Numa passagem marcante, nossa heroína arquiteta um plano pra aniquilar “qualquer chance de repercussão em torno da vencedora do Miss Bumbum,” concurso do qual ela mesma saiu vice: “fingir um namoro gay com a terceira colocada.”
Pagou um paparazzo pra flagrar as duas se pegando no dia seguinte à premiação, com direito a massagem e bunda de fora, e apareceu em todos os sites de fofoca. Uma dessas notas, publicada no Extra, confirma a vitória: “Ninguém lembra mais quem foi a primeira colocada do Miss Bumbum, realizado na última sexta-feira, em São Paulo.” Só se fala na Andressa.
Comemoração pública? Volta olímpica? Que nada. “Procurada pela coluna, Andressa não quis comentar o flagra. ‘Não quero falar sobre isso. Me causou um estresse muito grande. Me ligue se for para falar de trabalho.’”
DIABÓLICA a mente da mulher que planta uma nota na imprensa e, quando procurada, reage com “Não quero falar sobre isso.” Melhor ainda foi o caso do carnaval: meses depois do Miss Bumbum, Andressa discutiu ao vivo com um dirigente da Tom Maior, no meio do Sambódromo, alegando que a escola a rebaixou de surpresa pra uma posição menos prestigiada. Bateu boca, chorou, fez um escândalo — tudo transmitido pela Globo.
Na biografia, a versão é outra. "Inventei que assaltantes haviam roubado minha fantasia da escola de samba Tom Maior,” e a solução encontrada (por ela) foi aparecer “no Sambódromo do Anhembi com os seios completamente à mostra;” coisa que a direção não gostou muito.
Até aí, nada de novo. Barraco no carnaval é o arroz-com-feijão das subs. Curioso mesmo é que a autobiografia da Andressa Urach — a mesma Andressa que precisava recorrer a esse tipo de esquema Pinky-e-o-Cérebro pra aparecer no jornal — tenha alcançado a marca de um milhão de cópias vendidas.
Um milhão de vendas é um desempenho espetacular, comparável apenas aos grandes fenômenos do mercado editorial brasileiro, como o livro de colorir para adultos JARDIM SECRETO (que vendeu 650.000 unidades no mesmo ano), ou o livro de colorir para adultos BOBBIE GOODS, cuja edição nacional já ultrapassa os 2 milhões de exemplares.
Pra dar um contexto, a biografia da Clarice Lispector — cujo nome, vale dizer, empresta classe a condomínios de luxo — foi considerada um grande sucesso por aqui quando vendeu “quase 30 mil exemplares” na primeira edição. Nem trinta mil. Quase trinta.
Já a autobiografia do Matthew Perry, o eterno Chandler de FRIENDS, vendeu 125.000% a mais no dia da morte do ator: “Foram quase mil livros vendidos em poucas horas,” segundo a Folha. Quase mil? Perdoe o momento Telecurso, mas 125.000% quer dizer que o período vendeu 1.250 vezes a mais do que o normal. Se um aumento de 1.250x não chega a mil cópias, é porque o livro demorava dias pra vender um único exemplar. E olha que era a biografia do Chandler!
Parece desproporcional que Andressa Urach, cujo currículo inclui cinco meses como Latinete e diversas cusparadas n’A FAZENDA, movimente números tão superiores. Ou pelo menos pareceria, não fosse o envolvimento pesado do bispo Edir Macedo.
Recém-convertida, Andressa escreveu MORRI PARA VIVER com a ajuda de Douglas Tavolaro, coautor de NADA A PERDER (biografia do bispo Macedo) e vice-presidente de jornalismo na Record (emissora do bispo Macedo). Das primeiras 400 mil cópias de MORRI PARA VIVER, 350 mil foram comercializadas em templos da Igreja Universal (fundada pelo bispo Macedo). Até no livro ele aparece:
Certa ela. A Igreja Universal é o último reduto dos literatos. NADA A PERDER, trilogia biográfica do bispo, vendeu (ou alega ter vendido) mais de 7 milhões de cópias. Já o onipresente CAFÉ COM DEUS PAI, do pastor Junior Rostirola, acumula seis milhões de vendas — incluindo lançamentos em inglês, francês, espanhol e alemão — mesmo sendo basicamente uma Bíblia comentada; e nem tão bem-comentada assim.
(“Há quem diga que a arte imita a vida," escreve Rostirola. “Assim como na arte, muitas vezes a jornada de uma pessoa pode passar por inúmeros desafios, como um longa-metragem.” Assim como na arte, a vida é como um filme! É o que eu venho dizendo.)
Claro que esse público-alvo exige uma certa adaptação da parte da Andressa; e é aí que entra Douglas Tavolaro. Pra convencer o crente a prestigiar uma obra em que a nova fiel admite cheirar cola de sapateiro, gastar seis mil num sagui e casar (brevemente) com um falso médium amigo do Boninho, Tavolaro constrói uma narrativa de filha pródiga, imbuindo o relato de culpa e arrependimento.
Toda pequena infração da Andressa contra a moral pública é exagerada por seu coautor, obrigando nossa querida a pedir perdão às massas: “Por muito tempo, me apresentei nos shows vestida com uma fantasia sensual de diabo. Isso já dizia tudo.” (Tudo o quê?)
Já as anedotas mais escrachadas, como a vez que Andressa encomendou um trabalho contra uma garota de programa rival (“e aconteceu da maneira como determinei: surgiram sete furúnculos em sua parte íntima”), ganham tons de tragédia. “Eu me tornei um ser humano péssimo,” lamenta, “sem adjetivos à altura.” Sem adjetivos à altura! Queria eu me livrar tão fácil de arrematar um parágrafo.
Com a ajuda de Tavolaro, Andressa renuncia a todas as suas conquistas. Quando ela se gaba de ter virado “uma das prostitutas mais caras e desejadas do Brasil,” lá vem ele puxar as rédeas:
Qualquer admissão de orgulho seria inaceitável; afinal, a profissão que tornou Andressa famosa não é compatível com a modéstia de uma mulher evangélica. “Estava tomada por uma cega e perigosa ganância,” diz ela sobre a ocasião em que ganhou DUZENTOS MIL REAIS tirando a roupa num cabaré por um total de vinte minutos.
(Antes que você desconfie da cifra, vale apontar que Andressa “interpretava uma bruxa, com um vestido preto longo e uma vassoura nas mãos,” e a bruxa então se transformava em uma linda mulher: “eu surgia praticamente nua ou com as partes íntimas pintadas de tinta.” Imagine Andressa Urach vestida igual à bruxa Keka e com a buceta pintada de verde. Duzentos mil tá de graça.)
Pior ainda é o segundo livro, DESEJOS DA ALMA: VENCENDO A ANSIEDADE, A DEPRESSÃO E OS VÍCIOS (2019). Nesse, Andressa conta que colocou na Fogueira Santa — leia-se: doou à Igreja Universal — seus “maiores bens financeiros: carros, joias, tudo de valor mais alto devolvi a Deus.”
Se MORRI PARA VIVER já exige de Andressa um mea culpa, DESEJOS DA ALMA parece uma confissão ditada às pressas, na ansiedade de descobrir quantos pai-nossos rezar. "Hoje, tenho consciência de que eu era um ser humano detestável. Extremamente arrogante, me achava superior às outras pessoas. Era tão repugnante que nem o macaco queria ficar perto de mim."
Pra alguém tão “detestável,” até o básico da saúde exige sacrifício. Na ocasião de um diagnóstico de sífilis, Andressa doa à Igreja todo o dinheiro que ganhou no mês: “Nem as minhas contas paguei, entrei no cheque especial.” Dezenas de milhares pra curar uma infecção cujo tratamento é uma dose única de benzetacil.
Talvez te surpreenda que Andressa Urach — logo ela! — tenha caído nesse papinho de doar carro pra Igreja.
Não deveria. Andressa aderiu à Universal em um momento delicado, quando seu corpo rejeitou os 400 mililitros de hidrogel (duzentas vezes mais que o limite da Anvisa) injetados nas coxas, levando a uma internação em estado grave. Em meio à infecção generalizada e à falência dos rins e do sistema circulatório, enlouquecendo de dor, ela vive uma experiência mística: “Vi uma luz muito forte, que me acompanhava cada vez mais de perto. (…) Era a paz absoluta. (…) Era Deus. Eu sei que era Deus.”
Antes do coma, Andressa enxergava a Universal como uma enganação. Ela mesma admite no livro, sempre em tom de culpa. Só depois do coma, quando ela desabafa com o primo evangélico sobre a visão divina, é que Andressa começa a ser aliciada: “Foi quando os pastores da Igreja Universal do Reino de Deus passaram a fazer as primeiras visitas na UTI.”
Sejamos sinceros: se VOCÊ fosse internada com a maior dor que já sentiu na vida, entrasse em coma, sentisse uma presença divina e acordasse milagrosamente curada, talvez a agulha do seu bom senso também perdesse o norte. Agora imagine que, nesse estado absurdamente vulnerável, recrutadores profissionais da Universal te visitassem, aumentando pouco a pouco a pressão até que o próprio Edir Macedo pousa ao lado da sua cama. Será que você resistiria?
Não seria exagero nenhum chamar de predatória essa estratégia da Universal de converter pacientes na UTI; ainda mais considerando o relato da Andressa, em DESEJOS DA ALMA, de que a Igreja propagandeia a cura de todo tipo de doença por meio da fé.
Mas o buraco é mais embaixo.
Numa entrevista recente à Blogueirinha, Andressa conta que a gota d’água pra sair da Universal foi perceber que eles queriam lançá-la como candidata: “Dentro do sistema religioso existem, sim, pessoas que eles escolhem pra liderar e estar dentro da política. Eu não sou uma marionete na mão de ninguém.”
Qualquer entrevistador minimamente competente teria redirecionado a conversa ali mesmo, deixando de lado o ângulo da fofoca e tentando entender o que é que Andressa quis dizer com “o sistema religioso escolhe líderes políticos.” É óbvio que existe alguma grande maracutaia ali, e que Andressa foi cooptada justamente pelo potencial do seu nome, que pode não emprestar classe a condomínios de luxo mas certamente emprestaria relevância a um santinho.
Infelizmente, a entrevistadora em questão era a Blogueirinha, que diante da escolha entre o jornalismo e o entretenimento optou por nenhum dos dois. Mesmo caso do Tavolaro, que desperdiça a história da Andressa em um livro de estreia tosco e autopenitente, que só vendeu um milhão sendo impulsionado pela Universal — justamente pra valorizar o passe da futura candidata.
Aliás, o segundo livro consegue ser ainda pior. O terceiro, então…
epílogo
Publicado esse ano no Hotmart, o terceiro livro da Andressa é menos biografia e mais folheto motivacional:
São quarenta e sete páginas de autoajuda voltada a adultos cujo sofrimento tem raiz na infância; o público-alvo menos recortado possível.
Não bastando a generalidade do texto, o livro todo (ou quase todo) é redigido por IA. Em certos trechos, como a Playlist pra Acalmar a Alma, dá até pra fazer uma engenharia reversa e obter a mesma lista no ChatGPT:
Se eu não gostasse da Andressa, esse aí seria o final perfeito pro meu texto: apontar o declínio qualitativo e quantitativo que cada livro dela sofre em relação ao anterior. Quarenta e sete páginas? ChatGPT? Ótimo! Generoso da sua parte me dar tanto material. Que Deus te devolva em dobro!
O problema é que eu gosto da Andressa; não só gosto como tenho um grande respeito por ela. Acho ela engraçada, forte, bem-vivida. Em vez de material pra piada, a mediocridade do MAPA DA CURA me trouxe aborrecimento. Que é que essa mulher tem na cabeça de publicar um negócio desse?
Mesmo depois de ler quatrocentas páginas sobre Andressa Urach e assistir a horas de entrevista, a impressão que fica é que ela ainda tem muito a dizer. Até esse último exercício criativo hiperterceirizado deixa entrever algo de inédito: “Eu já estive internada em hospitais psiquiátricos. (…) O desejo de morrer, na verdade, é um desejo de encontrar alívio."
Torço que Andressa abandone o projeto MAPA DA CURA e invista em um coautor decente, pra uma autobiografia definitiva — algo que faça justiça ao tanto que ela viveu. E se não encontrar um decente, Andressa, me dê um toque. Eu escrevo pra você.
¹ Esclarecimento: este texto só se refere ao trabalho da Andressa pelos termos que ela mesma escolhe usar.
² Dançarina do cantor Latino.
Só não entendi porquê um texto tão longo quando uma fantasia de diabo já teria dito tudo
passando mal com "infelizmente, me tornei a gostosa com o maior rabo do brasil 😔 foi muito difícil"