Quem diz que “todo dia sai de casa um malandro e um otário” dificilmente se imagina no lugar do otário. Ou você é malandro, ou é a exceção — um espectador tranquilo, às margens da trambicagem, imune a tudo isso aí. Otário são os outros. A tragédia do otário é não enxergar a própria vocação.
Maíra Cardi que o diga.
Em meio ao chá-revelação-de-corna da Maíra, em 2020, a coach publicou um agradecimento ao apresentador Pedro Bial pelo cavalheirismo em apoiá-la — sem notar que o perfil em questão era falso.
Não bastando a humilhação de expor na mídia as 16 puladas de cerca do Arthur Aguiar e aí cair num fake chamado PEDRO BIAL FRASES, Maíra então perdoou o ex-marido, que prontamente a traiu pela décima sétima vez.
Malandra ela não é.
Ainda assim, parece ingênuo tachar de otária alguém que já foi denunciada pelo exercício ilegal de duas profissões diferentes. Enquanto o influenciador médio se limita a especializar em conteúdo crente ou conteúdo coach, Maíra abraça ambos e muito mais. Mentoria financeira, dieta restritiva, submissão feminina, terapia quântica; a mulher tá em todas. Se tem alguém comprando, ela tá vendendo.
Natural, então, que um livro de autoria dela ocupe a interseção exata de tudo que aflige o Brasil. É a inauguração de um novo e terrível gênero: a biografia-autoajuda-crente de ex-BBB.
Foi essa gororoba literária que eu passei as últimas semanas lendo e analisando, pra melhor responder nossa pergunta: entre o malandro e o otário, quem é Maíra Cardi?
O QUE SE COME NO CÉU? (MAÍRA CARDI NIGRO, 2025)
Publicado em abril pela editora Citadel — a mesma de VOLTA POR $IMA, do Nego Di, e de um best-seller americano cuja capa anuncia Uma entrevista exclusiva com o diabo, escondida desde 1938! —, O QUE SE COME NO CÉU? já começa desconcertando o leitor logo na capa:
Ao topo, vemos o misterioso nome Cardi Nigro, com o qual a autora não se identifica em momento algum. Ela se refere a si mesma como “Maíra” vinte e cinco vezes ao longo do livro; “Cardi Nigro”, nenhuma. O mais perto que ela chega é anunciando "Agora, meu nome é Maíra Cardi Nigro" (p. 366), estilo vilão do Batman.
Pra que o pseudônimo? Usando de um enferrujado materialismo dialético, meu palpite seria que a Citadel, na intenção de precarizar o capista, tenha sugerido omitir o “Maíra” pra aproveitar a mesma diagramação d’O HOMEM QUE COMPROU O TEMPO — lançado simultaneamente pelo marido dela, Thiago Nigro. A menos que dê pra me processar por sugerir isso. Nesse caso, é porque fica mais bonito.
Embaixo do nome da autora, uma maçã lustrosa, cuja casca negra — recém-mordida por alguém com a dentição do Rawhead Rex — revela um interior dourado e estranhamente farelento. (Deixo ao cargo do leitor decidir se o esquema de cores é mais próximo de fruta celestial ou de mobília na sala de espera de um dentista que o seu plano não cobre.)
Finalmente, em letras garrafais, “O QUE SE COME NO CÉU?” divide espaço com o subtítulo: Como dominar os 3 principais portais que alimentam nosso corpo, mente e alma.
O primeiro portal são os olhos, que ela chama de “portal da pornografia," pelo qual “se estimula todo tipo de orgia sexual, gastronômica ou mental.” Só a Maíra descreveria como orgia mental algo que ela quer te convencer a evitar. Depois vem a boca, o segundo portal, cujas palavras definem “quem você é e quem você será." Ouso dizer que a boca também pode ser um portal da pornografia, dependendo da disposição envolvida.
Já o último portal são os ouvidos, pois “tudo que se ouve repetidas vezes se torna sua verdade absoluta."
Aqui eu preciso concordar. Não resta dúvida de que a mulher que reposta um print do Pedro Bial Frases, que perdoou 16 traições do mesmo homem e que estampa, toda semana, manchetes como MAÍRA CARDI ASSOCIA BOLO DE CHOCOLATE A ALZHEIMER E É ACUSADA DE TERRORISMO acredita em qualquer coisa que digam.
Juntos, os três portais formam a base de uma grande filosofia moral; filosofia essa que a autora apresenta entre as páginas 19-22 e nunca menciona de novo.
Eu até queria tirar sarro da Citadel por destacar, na própria capa do livro, um conceito que cai em desuso já na introdução. Mas a verdade é que qualquer subtítulo seria incapaz de representar a verdadeira natureza d’O QUE SE COME NO CÉU: uma série de frases que nenhuma outra pessoa colocaria nessa ordem.
Nenhuma outra obra, artigo, revista, fascículo ou trabalho acadêmico emendaria “O câncer matou meu pai” com “Abri meu primeiro programa de emagrecimento.” Só a Maíra escreve um parágrafo desses — e mais uns quinhentos tão malucos quanto.
A seção SAÚDE DA PELE, por exemplo, abre com a seguinte frase: “Uma das constatações que mais me ajudaram a tomar água foi quando eu soube que…” Peço ao leitor, por gentileza, que imagine o desfecho dessa ideia. Qual poderia ser a informação que despertou em Maíra a vontade de se hidratar?
Outra seção aborda o sobrepeso, assunto no qual a autora se especializa; e aí o repertório fica evidente. “A palavra ‘sobrepeso’ é interessante. Sobre o peso. Afinal, o que existe ‘sobre’, isto é, por cima do peso?” (p. 94). A sacada é tão boa que se repete, quase idêntica, quarenta páginas depois: “Sobrepeso. Já pensou no significado dessa palavra? Sobre o peso. O que existe sobre o peso, acima do peso? O que é mais importante que o peso em si?”
Aliás, vários dos melhores momentos d’O QUE SE COME NO CÉU rolam quando a autora, responsável pela maior empresa de emagrecimento do Brasil (segundo a capa do livro que ela mesma escreveu), resolve estralar os dedos e mostrar serviço.
Generoso da parte dela entregar assim, por meros R$ 36,90 (edição do Kindle), o segredo do sucesso. Odeia fazer dieta? E se a sua dieta fosse gostosa e maravilhosa? Agora sim hein!
"Ao aprender a fazer diferente do que sempre fez, você conseguirá ter novos resultados, diferentes do que sempre teve." Outro excelente conselho. Esse é o tipo de insight que só uma coach de emagrecimento, tecnicamente barrada de exercer a profissão de nutricionista, consegue te dar. Quer mudar sua vida? Uma sugestão: mude! 🙂
Não que eu esteja reclamando. Esse jeito todo Maíra de escrever é o charme do livro, ou pelo menos o pouco de charme que o livro tem. O que me incomoda mesmo é quando o texto começa a fazer sentido:
De uma hora pra outra, o vocabulário da autora muda. Fronteiras do tangível! Compêndio de diretrizes! A mesma pessoa que até então caía em fake do Pedro Bial agora descreve habilmente a função da colecistocinina na contração da vesícula biliar. Tem uma hora que ela tá narrando o sonho profético dela (calma que tem muito chão pela frente) e fala bem assim: "Enquanto eu explicava o que deveria ser feito, uma presença tétrica tomou conta de tudo."
PRESENÇA TÉTRICA? Que que falta, citar Platão?
Tamanha é a disparidade entre os estilos que dá até pra imaginar duas pessoas diferentes escrevendo o mesmo livro — uma é a Maíra, digamos, e a outra é a Cardi Nigro.
Uma breve explicação da fibromialgia, no capítulo sobre curas milagrosas, cita como fonte a página “12 de Maio - Dia de Conscientização e Enfrentamento da Fibromialgia” no site da prefeitura municipal de Felisburgo - MG. Clássico momento-Maíra.
Já o parágrafo sobre o sistema glinfático linka um artigo no Korsakov Journal of Neurology and Psychiatry, que você literalmente só consegue encontrar em russo.
Até dentro de um mesmo assunto o repertório dela varia muito.
"Me perguntam bastante”, diz Maíra, “como eu lido com as críticas sendo uma pessoa pública de muito alcance. As críticas nunca são sobre mim. Bem dizia o Sigmund Freud, criador da Psicanálise: ‘Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo.’”
Essa frase não é do Freud.
Não que eu conheça a frase, ou que eu tenha um conhecimento enciclopédico de Freud a ponto de bater o olho e já saber se ele disse tal coisa ou não. É que, duzentas páginas antes, Maíra puxou uma nota de rodapé pra explicar o conceito de psique, e a fonte era o artigo Aparelho Psíquico do site MUNDO EDUCAÇÃO.
Via de regra, quem cita esse tipo de site não é exatamente uma autoridade no que tá dizendo. Mundo Educação é referência escolar; um bom recurso pra quem tem zero familiaridade com o assunto. Sabendo disso, você imaginaria que uma frase atribuída a Freud pela Maíra Cardi não necessariamente venha do Freud, e de fato não vinha — a atribuição correta seria Autor Desconhecido.
Nada contra. O estranho é, que logo adiante, Maíra cita o ensaio “RECORDAR, REPETIR E ELABORAR” [“ERINNERN, WIEDERHOLEN UND DURCHARBEITEN”], publicado por Freud em 1914:
Não deixa de ser possível que, nos três meses e meio [19 de out. a 4 de fev.] entre os acessos ao Mundo Educação e ao RRE, Maíra tenha desenvolvido um enorme interesse pela psicanálise, aumentando rapidamente seu repertório até alcançar a bibliografia original. É possível! Coisas mais bizarras já aconteceram. (Não me vem nenhum exemplo à mente no momento.)
O que parece um pouco mais difícil de acreditar — com todo respeito — é que a mesma pessoa que lê um ensaio do Freud na íntegra confie na matéria OS TERRÍVEIS EXPERIMENTOS QUE INVESTIGARAM O AMOR, do History Channel Brasil.
Isso quando o problema não é uma coincidência, digamos, entre o texto da Maíra e uma fonte não citada. Basta comparar um trecho sobre o peptídeo GLP-1, no livro dela, com o segundo resultado do Google pra busca “peptídeo GLP-1”:
Difícil dizer ao certo quanto d’O QUE SE COME NO CÉU sofre dessa mesma coincidência. Seria preciso jogar o livro inteiro no Google, e um trabalhão desse não me interessa. Muito mais interessante é o fato de que a Maíra — a mesma Maíra que caiu num fake do Pedro Bial — supostamente entende de peptídeo, Freud e Platão.
Sejamos razoáveis. Por maior que seja o potencial humano, só existe UMA explicação possível pra esse repertório todo. Eu não queria ter que dizer, mas algo precisa ser dito. Isso mesmo: o que aconteceu no livro da Maíra foi um milagre divino.
No caso dela, não seria o primeiro.
Enquanto eu e você, reles mortais, dependemos do mistério da fé pra guiar nossa alma na escuridão, Maíra dispensa rodeios. Fé pra quê?, se eu posso simplesmente exigir que Deus comprove a própria existência, igual o INSS faz com velho?
Três anos atrás, Maíra foi tocada pelo divino enquanto se hospedava num resort de luxo em Angra dos Reis. (Caso isso ainda não tenha acontecido contigo, considere que talvez você e Deus não frequentem os mesmos hotéis.)
Nossa autora começa a sentir uma crise de pânico —”[tinha] dificuldade para respirar e não conseguia falar. Meus olhos estavam completamente pretos, e meu corpo inteiro formigava”—, que evolui pra um desmaio. Quando Maíra acorda, uma amiga crente, hospedada no mesmo hotel, pergunta se ela aceita Jesus. Desesperada, ela responde que sim.
Curioso que o barulho das luzes se apagando pareça com o da chave geral de energia sendo desligada. A vida tem dessas. Não que o barulho seja importante; ao longo desse episódio à la OS FANTASMAS SE DIVERTEM, Maíra “babava, vomitava, estava descabelada e me perguntava a todo momento: ‘Será que Deus existe? O que está acontecendo?’. Comecei a desafiá-lo, em pensamento: ‘Se você existe mesmo, fale comigo!’.”
Via de regra, Deus não aceita esse tipo de exigência. A taxa de conversão de uma prece dessas é tão baixa que, quando alguém consegue, vem logo a Igreja canonizar, ou no mínimo levar um souvenir pra casa.
Mas aí são os outros. A plebe. Maíra Cardi não é uma qualquer.
“Em minha mente, falei com Deus: ‘Deus, se você existe mesmo, eu quero uma resposta direta e rápida. Eu vou chamar [no Instagram] o pastor que eu vi semana passada agora, às três da manhã, e ele vai responder em um minuto. Só assim vou levar em conta que isso tudo foi algo espiritual’.”
Bacana o jeito que ela conversa com Deus como se fosse um garçom. Será isso o que me falta? Estalar os dedos em direção ao céu? Ei! Ei! Aqui! Ô porra. Alá, nem olha pra gente. Rio de Janeiro é foda mesmo.
E o pastor? “Surpreendentemente, quando mandei mensagem de madrugada, ele respondeu imediatamente."
Respondida a mensagem, o cenário abre caminho pra uma linda jornada espiritual: "Foi algo tão intenso que fiquei três dias distante das redes sociais, porque minha vida foi completamente ressignificada." Caramba! Uma visão divina conseguiu te afastar três dias do celular? Tudo posso naquele que me fortalece!
Desde então, Maíra e Deus andam inseparáveis. Foi Ele mesmo, inclusive, que convenceu a autora a escrever O QUE SE COME NO CÉU. Aliás, escrever não — psicografar.
Tá explicado. Não é a Maíra que entende de Freud, Platão e peptídeo. É Deus!
Curioso que a autora aborde com tanta naturalidade a admissão de ter o Espírito Santo (o ghostwriter original. entendeu? ghostwriter.) como parceiro de escrita.
Afinal, pouquíssimas obras alegam reproduzir diretamente a palavra de Deus. Uma é o Alcorão, outra a Torá… talvez o resto da Bíblia, dependendo de quem você pergunta. E agora mais uma: O QUE SE COME NO CÉU, de Maíra Cardi!
Conveniente, inclusive, considerando o tema do livro — o equivalente celestial do cardápio do bandejão. “Você sabe a diferença entre comer e se alimentar?”, pergunta Maíra. “Poderíamos até pensar que são sinônimos; mas,” pro propósito do meu livro, vamos fingir que não.
COMER, esclarece a autora, é “qualquer coisa”. Ótimo! Sempre bom definir um conceito abarcando tudo que existe. Vou já experimentar: “eu gostaria de comer o cu de quem publicou essa merda.” E não é que funciona mesmo?!
Já o ALIMENTAR é tudo que nutre nosso corpo, mente e alma. No céu, você se alimenta de boas emoções: “amor, alegria, confiança, sabedoria, paz…” E no inferno? “Sem dúvida,” a nutrição seria “o que chamamos de ‘produto alimentício.’”
Palavras fortes. Enquanto no céu se come amor, no inferno se come requeijão.
De fato, a própria chegada ao inferno se dá por conta do requeijão.
"Nós nos alimentamos através de três portais: olhos, boca e ouvidos. Eles são as principais entradas para o céu." Eis aí a grande filosofia moral do livro (pp. 19-22) — uma espécie de transtorno alimentar evangelizante, em que o seu consumo de Trakinas pode ser conectado, numa linha reta, ao pecado original.
Segundo a autora, tudo que faz bem já existia no Éden. Afinal, “Quando Deus fez o Éden, ele o fez perfeito; era um lugar deslumbrante, lembra?” Não lembro, Maíra. Você lembra? Se lembra, com certeza seu livro devia focar mais nisso.
“Enquanto viviam no Éden,” continua, Adão e Eva “se alimentavam de frutas, verduras, legumes e animais.” Já “esses produtos alimentícios”, como biscoito, miojo, etc, “vieram depois do castigo” — em outras palavras, são “o banquete do Diabo.”
Consumir o “banquete do Diabo” (alimentos ultraprocessados) gera três efeitos, dos quais ir pro inferno é a grande novidade. Os outros dois, sobrepeso e doença, a gente meio que já sabia. Isso aí eu não preciso da Maíra pra me dizer; tá em qualquer cartilha do SUS.
Ou pelo menos era o que eu achava antes de esbarrar nessa frase:
“Muitas vezes, com a vida moderna que levamos, desconsideramos algo muito importante e simples: se você comer tudo que Deus fez, nunca ficará doente ou com sobrepeso” (p. 62)
….Nunca?
Uma ideia dessas tem ramificações absurdas — e absurdamente cruéis.
Quando você diz que basta comer “tudo que Deus fez” pra não ficar doente, você também tá dizendo o contrário: que a pessoa só fica doente porque não comeu o que devia comer. Ou seja: pra Maíra, a doença é culpa do doente.
Qual doença? Todas. Crônicas, genéticas, degenerativas. Aliás, esquece isso de gene: "As nossas doenças mentais, físicas e emocionais se iniciam na mesa de nossos bisavós, sabia? Desde o que eles comiam – que acredito que nos geram doenças genéticas–"
Vale lembrar que alimentação, no livro da Maíra, quer dizer mais que comida.
Sabe quando ela disse que “o que se come no céu” é amor, alegria, pararaparara? Isso foi ela preparando o terreno pra avisar que não basta comer bem pra não adoecer. Você tem que pensar bem e agir bem; isto é, pensar e agir segundo a vontade de Deus.
"Se o pensar ou o agir for incongruente com os mandamentos divinos e bíblicos, a doença aparecerá” (p. 159)
Em termos de doença, Maíra é bem democrática. Comer, pensar e agir mal causa tudo, desde câncer a psoríase. (Lembra do MAÍRA CARDI ASSOCIA BOLO DE CHOCOLATE A ALZHEIMER? Era isso.)
Da mesma forma, comer, pensar e agir bem reverte tudo, DESDE CÂNCER A PSORÍASE — supondo que a sua transformação seja verdadeira. Mas não tema! Quem não consegue se transformar sozinho pode buscar um guia qualificado.
Um desses guias, claro, é a Maíra.
No terceiro capítulo, a coach relata a experiência de uma cliente, Juliane, que sofria há anos com a fibromialgia. (É nessa parte que ela cita o site de Felisburgo-MG.) Depois de “um processo intensivo de dois dias, explorando as profundezas da sua mente,” Juliana sai curada.
Da fibromialgia. Que não tem cura.
Em seguida, Maíra conta da vez que ajudou o próprio pastor, Thiago, cuja visão foi prejudicada pelo ceratocone — uma condição ocular progressiva, genética e irreversível.
"No caso dele, para mim, era muito lógico que existia algo que ele não estava querendo enxergar, exatamente por isso seus olhos estavam morrendo aos poucos, e sua vista, sendo destruída." (p. 105)
Talvez não tenha ficado 100% clara pra você a estratégia da Maíra de responsabilizar o doente pela própria doença. Felizmente, ela mesma esclarece isso:
"Quando a Juliane [fibromialgia] e o Thiago [ceratocone] entenderam que estavam sendo responsáveis pela sua enfermidade, eles decidiram fazer diferente. (…) Pela repetição dos novos pensamentos e das novas ações, começaram a se curar.” (p. 107)
CONCLUSÃO: MALANDRA OU OTÁRIA?
Da primeira vez que eu li O QUE SE COME NO CÉU (não vem ao caso quantas vezes eu reli esse livro nas últimas semanas. não me pergunte), o que mais me emputeceu não foi nem esse papo aí da doença.
Foi o Éden.
Sem dúvida, o leitor mais catequizado (ou simplesmente munido de senso comum) também estranhou a referência a um bufê de frutas, verduras e animais no Jardim do Éden, considerando que no Jardim do Éden não se come carne.
Claro que rola uma exceção bem importante a esse “todo fruto de árvore servirá de mantimento”; o que também não deixa de ser curioso, considerando a ênfase da autora no poder redentor das frutas.
Ainda assim, parece bizarro que uma influenciadora religiosa, autora de um livro chamado “O QUE SE COME NO CÉU?”, desconheça um detalhe tão básico do que se come no céu. Afinal, o versículo 29 do primeiro capítulo de Gênesis tá, literalmente, na primeira página da Bíblia:
Por alguma razão, foi esse detalhezinho que me fez perder a cabeça. Porra, cara… o único trabalho desse livro era pregar teologia pseudocientífica, e nem isso a Maíra consegue fazer? Virou pseudociência pseudoteológica?
De que adianta frequentar o cercadinho vip de uma igreja em Alphaville — a Lagoinha Global — se você não leu nem a PRIMEIRA PÁGINA da Bíblia?
A questão é essa: Maíra não lê a Bíblia.
Até pouco tempo atrás, a coach não acreditava em Deus. Nem Deus, nem pecado, nem submissão feminina, nada disso — ela inclusive se considerava uma “feminista agressiva”.
Pudera. Viu a mãe, que dedicou a vida a ser uma boa esposa, tentar o suicídio depois de ser trocada por outra mulher. Viu o próprio marido (Arthur, o terceiro) traí-la uma, duas, dezesseis vezes, inclusive enquanto ela amamentava a segunda filha. Viu o pai morrer sem nunca ter dito “eu te amo”. Diz ela que, se a Maíra de uns meses atrás ouvisse o que ela mesma escreveu nesse livro, “nunca mais falaria com essa pessoa.”
Em meio ao seu quarto casamento, aos 40 anos, talvez a vontade seja de recomeçar. Tentar uma coisa nova. "Existe um desejo gigantesco em mim”, diz Maíra, de “renunciar a tudo e viver para minha família, assim como fizeram minha avó, minha mãe, minha sogra… mas para nenhuma delas deu certo.”
Pra ela não vem dando também. Todo dia sai uma notícia como MAÍRA CARDI COMPRA ESCRITÓRIO PERTO DE THIAGO NIGRO PARA “VIGIAR” O MARIDO, ou MAÍRA APONTA MUDANÇA QUE FEZ NA VIDA DE THIAGO NIGRO E INTERNAUTAS REAGEM: “O QUE ESSE HOMEM PASSA DE HUMILHAÇÃO”.
Até na igreja ela se sente deslocada. Diz que os fiéis a julgam e excluem: “Essa saia não está boa, essa voz não está boa, esse tom, essa atitude, essa roupa não estão boas, evangélicos não falam assim.”
Mas ainda que tudo desse certo, Maíra sabe que não seria suficiente. Depois de anos sustentando o Arthur, ela optou por sumir das redes por um tempo e curtir a vida de esposa de milionário — “cozinhar, levar minha filha à escola, brincar, andar na rua.” O resultado? “Nesse processo, percebi que sentia falta do trabalho.”
Ela não quer essa vida.
Dizer que “todo dia sai de casa um malandro e um otário” é negar o pensamento dialético. O otário guarda dentro de si um malandro, que é justamente quem vê bom negócio em comprar coisa barata na internet — e aí leva o golpe.
Da mesma forma, o malandro traz dentro de si um otário; e é esse otário que grita dentro da Maíra, e a obriga a casar com esses homens patéticos e a brincar de crente na Lagoinha, e a se culpar pelo próprio câncer.
"…desde que eu tinha me curado do câncer, não comia mais coisas que me faziam mal. Afinal, foram elas – junto das emoções – que me adoeceram." (p. 225)
Por mais que eu despreze tudo que essa mulher representa, eu me compadeço dela por imaginar que, em alguma medida, ela despreza tudo isso também. Espero que ela encontre alguma paz; pelo bem dela, dos clientes dela e, acima de tudo, dos meus hábitos de leitura.
Todos os dias eu agradeço pelo desperdício do seu tempo que nos rende 5 minutinhos de alegria às 10h da manhã de uma quarta-feira alternada com outros possíveis dias da semana (às vezes nenhum)
laurinha, sabia que você é a nossa susan sontag?