cinco dias com isa thomé
relatando a visita oficial da embaixadora de criciúma a são paulo
Após muita insistência da minha parte, e muita relutância da parte dela, eu finalmente convenci
a se hospedar comigo por uns dias em São Paulo. Relutância compreensível: na posição de embaixadora cultural de Criciúma (SC), Isabela hesita em visitar cidades maiores, temendo deslumbrar-se com o esplendor do estilo de vida urbano.E quem não se deslumbraria? Certamente a locomotiva do país supera em muito os charmes encontrados em um município catarinense de médio a grande porte, cuja modesta projeção nacional se deve ao homônimo Criciúma Esporte Clube —guerreiro da série B—, à própria Isa Thomé e ao vice-campeão do Big Brother Brasil 19, o criciumense Alan Possamai.
(Segundo Isa, a escalação do surfista Alan pro BBB foi motivo de grande controvérsia. Em entrevista pré-confinamento, Alan queixou-se de morar numa cidade “sem cultura,” aproveitando a exposição em rede nacional pra cuspir no prato que o pariu. Só o que salvou Alan de um eventual linchamento foi o faux pas do jornalista investigativo Chico Barney, que à época declarou espanto com o fato de um surfista morar numa cidade sem acesso ao mar. Absurdo!, clamaram os moradores, nossa praia fica logo ali na cidade vizinha!. Assim Chico retomou o posto de homem mais odiado da população local, como é o caso em 95% do território brasileiro, e Alan viveu pra surfar mais um dia.)
Finda a estadia da minha amiga, decidi registrar aqui todas as maravilhosas experiências que eu proporcionei a ela durante a semana, reconstruindo um relato a partir de artefatos arqueológicos encontrados na galeria do celular e na fatura do meu cartão.
TERÇA-FEIRA
Às 8h em ponto de terça-feira eu fui acordada pela melodia vagamente tropical do alarme ISA RODOVIÁRIA — o primeiro de uma série de alarmes agendados em sequência, cuidado que eu tomo quando alguma ocasião especial exige que eu acorde antes das três.
Vestida nos meus trajes mais humildes, a fim de minimizar o choque cultural de uma criciumense exausta, segui rumo ao Tietê, determinada a resgatar minha amiga do mais confuso dos terminais rodoviários brasileiros. (Mas não o menos higiênico. Esse título pertence à rodoviária de Brusque-SC, cujo banheiro feminino não providencia um método descartável pra secar as mãos, e sim uma toalha xadrez de uso comunitário.)
Sentada numa área de espera sombria frente ao portão B, puxei da bolsa meu novíssimo Kindle e passei a folhear um livro japonês: Declínio de um Homem, de Osamu Dazai. Esse é o tipo de passatempo culto e globalizado que se espera de um morador da metrópole, e eu não estava disposta a decepcionar minha visita logo no primeiro dia. Concentrada em parecer concentrada nas lamúrias de Dazai, acabei não notando a chegada de Isabela até que ela já estivesse à minha frente.
Oieeeee!
Entortei o pescoço pra cima.
Trajando uma minissaia e um sorriso largo, Isa não parecia em nada afetada pelos 900km de viagem. De fato, não fossem as malas a tiracolo, ela poderia facilmente ser confundida com alguém que dormiu a noite toda na própria cama. Vamo indo?
Tolinha. Mal sabia ela o quanto destoava da população local, a começar pela sua aparente joie de vivre. Apressei-me em conduzi-la à segurança de um táxi, onde ela poderia apreciar São Paulo da forma mais recomendada: por trás de uma grossa janela de vidro. O passeio também me permitiria impressionar minha amiga apontando marcos turísticos da cidade pelo caminho, como a vitrine da loja Calibre 50, na Brigadeiro Tobias, cujo manequim ostenta uma máscara parecida com a do filme HALLOWEEN (1978).
Aproveitando a boa-sorte que é chegar em São Paulo numa terça-feira, descarregamos as malas no apartamento e seguimos direto pro MASP, cuja entrada às terças é gratuita.
Aqui na metrópole os dias da semana são patrocinados, explico à Isa, que ouve em silêncio e com grande atenção. Terça-feira no MASP é a Terça Nubank. O segurança do museu, que não me deixa mentir, cola próximo ao meu mamilo um pequeno adesivo estampado com o logotipo roxo do banco, e faz o mesmo pela Isa. Orgulhosas em representar com nossos seios o mecenato corporativo, trotamos escada abaixo pra conferir uma atração ainda mais turística que a vitrine da Calibre 50: a lojinha oficial do MASP.
Localizada num andar subterrâneo, a lojinha oficial do MASP reúne o melhor que o museu tem a oferecer: todas as principais obras da coleção permanente, de Portinari a Gauguin, ornamentando finíssimos artigos de papelaria.
Que belos chaveiros, aponto, e quanta riqueza de detalhe naquele ímã! Alguns diriam (eu inclusa) que uma obra de arte só realiza seu verdadeiro potencial estético quando é mutilada de forma a caber num marcador de página. E olha só, cutuco Isa nas costelas, cliente Nubank Ultravioleta ganha 50% de desconto! Imagine a pompa com que é tratado pela criadagem do MASP um cliente Nubank Ultravioleta. Devem estender um tapete vermelho, em rico veludo, da entrada do museu até a lojinha, e apresentar em leque os mais lindos cartões-postais, maravilhando até o mais sisudo visitante.
QUARTA-FEIRA
Empanturradas com um generoso brunch (refeição característica de São Paulo), iniciamos uma nova aventura na esquina da Lorena com a Bela Cintra, a uma quadra da Oscar Freire — a Fifth Avenue paulistana.
Naquela região é que moram os ricaços, os verdadeiros clientes Nubank Ultravioleta. Foi por ali que eu encomendei em 2020 meu primeiro conjunto de lentes Zeiss, que há também de ser o último, a despeito dos protestos do meu oftalmo. (Muito simpático o pessoal da Zeiss. O gerente de plantão até elogiou minha escolha de óculos, comentando que anda em alta aquele design da marca Celine, ao mesmo tempo em que ignorava educadamente o “ine” dourado que um breve toque dele transferiu da armação pro polegar.)
Distraída ruminando os triunfos do passado, perco Isabela de vista e a descubro parada do outro lado da rua, fitando um monumento a Odete Roitman.
Ostentando os dizeres LUTO e ODETE ROITMAN, a vitrine da galeria de arte destacava um digníssimo retrato à imagem da finada, emoldurado com folha de ouro suficiente pra revestir uma igreja mineira. Era uma visão e tanto. As ondas no cabelo de Odete, sustentadas na vida real pelo laquê, ganhavam proporções titânicas graças à escolha do artista em sombreá-las pesadamente com lápis. Já o maxilar da empresária assumia traços esguios, mais suaves que os da vida real, produzindo no espectador o curioso efeito de encontrar na foto de Débora Bloch uma certa semelhança com a Queixuda.
Ante tamanha homenagem, Isabela caiu no riso; reação natural dos que se emocionam.
Da Oscar Freire pegamos o metrô rumo a São Bento, onde o destino (e o agendamento prévio pelo site) nos levou a um tour do Farol Santander. Os prédios aqui também são patrocinados, explico à Isa, me esforçando em transmitir o máximo de sabedoria urbana que couber em nosso breve tempo juntas.
Começamos o passeio pelo topo do edifício: o mirante no 26º, cuja vista panorâmica ajudou a inspirar mais alguns dos meus comentários de cunho educativo —ali é o Viaduto do Chá, ali é o Teatro Municipal, ali fica o sebo em que um funcionário apalpou minha bunda nove anos atrás, etc, etc. Do mirante descemos ao Espaço Memória, no 6º andar, que abriga todo tipo de artefato do antigo Banespa (bancos dentro de bancos!), e no caminho não deixo de apontar uma discreta peculiaridade do prédio: a primeira escada em mão única da América Latina.
A coisa toda impressionou Isa de tal forma que ela exigiu retornar ao apartamento mais cedo, e assumiu uma expressão melancólica pelo resto da tarde — certamente contemplando o valor histórico do nosso passeio.
QUINTA-FEIRA
Encerramos a quarta-feira em grande estilo, com um banquete na Bento Freitas: dois hambúrgueres sangrentos e uma fatia de cheesecake. É seu aniversário?, pergunta o garçom. Não me parece ser meu aniversário, mas nunca se sabe. É bom prezar pelos fatos. Confiro a data no celular e respondo, com alívio, que não. Agora é, retruca o garçom; e desconta a sobremesa do cálculo final.
Saindo do restaurante mais velha do que entrei, me ocorre que nunca, nas quarenta vezes em que eu jantara naquela esquina, me aconteceu alguma coisa do tipo — nem mesmo no meu aniversário, que eu comemorei ali uns anos atrás. A sobremesa era a mesma, minha preferida, e o garçom era o mesmo, um barbudo de boné, e o boné era o mesmo também. Cortesia? Nunca.
Até aí, tudo certo. Nada contra uma anomalia temporal pra sacudir a semana. Eu mesma venho dizendo que ando ansiosa pra chegar aos quarenta, e um passinho a mais nessa direção me cai bem. Problema é que dia seguinte, quinta-feira, eu e a Isa almoçamos no Bar da Dona Onça, e ao fim da refeição cada uma ganhou um brigadeiro — cortesia da casa.
Dona Onça eu não frequento tanto. O lugar é caro, o público é idoso, e o cardápio de sobremesas me deprime. Se algum dia eu juntasse saúde mental pra pedir honestamente o doce Eu Sou Feliz, logo deixaria de ser, constatando que paguei 48 reais num perfil de sabor que o meu primo pequeno inventa quando ninguém vigia a geladeira.
Mas em algum momento eu já havia almoçado lá, com o mesmo garçom inclusive (fácil de lembrar pelo nome incomum), e não me ofereceram cortesia nenhuma. Nas mesas ao lado também não se encontravam outras forminhas de brigadeiro que indicassem um modus operandi. A sorte era nossa, e só nossa, pela segunda vez na semana. Mistério!
Não sei você, mas eu me considero uma pessoa provida de certo raciocínio. Um intelecto avantajado, por assim dizer. Bastaram então algumas horas meditando sobre o assunto pra chegar a uma variável comum entre os dois casos: a inédita presença de Isa Thomé. Por alguma razão, a mera visita da Isa comovia os presentes, e eles se atiravam uns sobre os outros para agradá-la — eu incluída, visto que sugeri uma porção de Eu Sou Feliz pra arrematar o almoço, e não teria me ressentido muito se ela aceitasse.
Tamanha generosidade de espírito perante estranhos é típica do paulistano médio, conhecido por enxergar em cada forasteiro um amigo em potencial. Verdadeiro exemplo de acolhimento humano a cidade de São Paulo, como já revela o seu lema: Non ducor, duco! (Latinório pra por favor, você primeiro.)
SEXTA-FEIRA
Sexta amanheceu chovendo pesado, e combinamos de esperar em casa um momento mais propício pro nosso passeio. O plano era visitar a Bienal de Arte no Ibirapuera, lá pelo meio-dia, e aí caminhar pelo parque, comentando a paisagem a esmo. Dois baseados depois, o plano foi esquecido: deitamos eu e a Isa de bruços, com as pernas pro alto e uma revistinha Coquetel Desafio em mãos, determinadas a torturar até a morte nossos últimos neurônios.
Não me ocorreu mencionar até agora que nosso ritual, toda manhã, consistia em sentar no sofá de pijama e jogar uma horinha ou duas de Mario Kart, Mario Party ou Puyo Puyo Tetris; competição leve e saudável, recorrendo a palavras de baixo calão somente quando necessário.
Curiosidade do Puyo Puyo Tetris pra você que não joga (presumo) é que a sua pontuação na partida não diz nada sobre os rumos do jogo. É possível chegar à vitória com 20x menos pontos do que o adversário, ou, na mesma moeda, perder com uma vantagem considerável. Esse fato, que em mim não provoca emoção nenhuma — devido a ser uma pessoa fria, lógica, intelectual, etc como já afirmado —, incomodou Isa profundamente.
Comprometida com a justiça do mundo, ela se revoltava toda vez que sofria uma derrota em desacordo com os números do jogo, e reclamava, apontando pra tela: Eu fiz mais pontos que você! Lá pelo terceiro dia de convivência eu já conhecia tão bem essa manobra que apontava pra TV antes mesmo da Isa reclamar, e comentava, fingindo surpresa: Ela fez mais pontos que eu!
Engraçado como duas pessoas se acostumam tão rápido uma à outra, sem motivo aparente. Não demorou muito pra que eu me sentisse capaz de prever o que a Isa diria a seguir, e mais, sentisse que ela também conseguia antecipar as minhas falas, e pior!, que às vezes uma coisa e a outra eram a mesma, e que as duas se alternavam em dizer o que ambas já vinham pensando.
Nessa altura as coisas se embolaram. Ficava metade da conversa dita e metade não-dita, presumido o entendimento mútuo de que seria redundante expressar em voz alta uma ideia que ocorreu às duas ao mesmo tempo. Dias depois, um amigo meu (testemunha desse iceberg discursivo) concordou que era um papo muito estranho de se assistir, e concluiu assim: vocês pegam o assunto e saem correndo.
No caso do Mario Kart, a coisa era mais simples. Meu costume, exímia jogadora que sou, é de permitir que um convidado ganhe aproximadamente 40% das partidas, de forma a não deprimi-lo pelo resto do dia. Estratégia sábia, modéstia à parte, e que obteve tremendo sucesso durante a estadia da Isa: não só ela aproveitou cada uma dessas oportunidades de vitória, alcançando o primeiro lugar sem desconfiar em momento nenhum da minha caridade, como também ganhou todas as outras corridas, incluindo as em que eu me esforçava. Nunca foi tão fácil manipular um resultado.
SÁBADO
No sábado também choveu e a Isa acordou com rinite, em nada melhorada pela minha decisão de visitar uma feirinha de antiguidades. Tossindo e espirrando, ela vasculhava caixas empoeiradas atrás de isqueiros, chaveiros ou qualquer velharia que despertasse interesse na atividade escolhida. Um apontador em forma de mini-máquina-de-escrever quase foi arrematado no preço de 50 reais, mas pareceu mais vantajoso aceitar a derrota.
Seguimos de mãos vazias à Bienal.
Com o perdão dos artistas, dos curadores e dos esforçadíssimos e desvalorizados profissionais da cultura envolvidos com a 36ª Bienal da Arte, não seria exagero dizer que essa é uma das exibições mais sem-graça que eu já visitei na vida, e entre as sem-graça, sem dúvida a mais longa.
São vários andares de nada. Chega a ser desnecessária a adoção de uma sala de acomodação sensorial onde pessoas neurodivergentes “podem encontrar um ambiente de baixo estímulo,” considerando que nenhuma obra ali estimula os sentidos de forma alguma. É tudo de uma neutralidade estética apavorante. O único registro do pavilhão inteiro no meu celular é essa foto da Isa sorrindo de nervoso numa dita experiência audiovisual:
Queria poder criticar alguma peça em específico, pra dar uma ideia do que tanto me desagradou, mas o impacto da Bienal na minha alma foi tão pequeno que eu não saberia descrever nada que me aconteceu lá dentro.
Pensando bem, talvez seja esse o intuito. Num mundo digital e globalizado, em que os celulares nos bombardeiam a cada instante com uma enxurrada de informações, torna-se cada vez mais importante a descompressão sensorial; coisa em que a Bienal desse ano certamente se especializa. Melhor ainda pra nós duas, que ao fim de uma semana caótica ganhamos uma horinha de tranquilidade. Parabenizo os organizadores pelo sucesso da empreitada, e também a mim mesma!, pelo bom gosto de sempre na escolha do passeio.
DOMINGO, último dia
Coroando um itinerário perfeito, repleto de atividades educativas e estimulantes, cabia ao domingo apenas fechar com chave de ouro a semana da Isa em São Paulo.
Começamos pelo brunch, optando por um croque madame cuja aparência se assemelha em muito à bolha do filme A BOLHA (1958), ou talvez à de um croque madame previamente digerido.
De lá seguimos a uma popular loja paulistana de camisetas e bonés descolados, cujas estampas, como “sabe o que cairia bem hoje? o patriarcado” e “azul não é cor de menino” Isabela aptamente descreveu como fora-temer-core.
Uma pena. Eu vinha coçando a cabeça atrás de um presente pra Isa, algo à altura do souvenir que ela mesma trouxe —um mascote do Criciúma Esporte Clube de braços abertos como Cristo na cruz, agora em local de destaque na sala—, e a loja em questão era minha última esperança.
Baita presente esse da Isa, inclusive, e não foi o único. Também ganhei um chaveiro imitando a camiseta oficial do Criciúma, amarela e preta, e além disso um livro, amarelo e preto, chamado ESSA GENTE MUITO DOIDA — Casos da vida comum e profissional ocorridos com pessoal do Banco do Brasil.
Eis aí mais um exemplo da nossa conexão bizarra, quase sobrenatural. Quem diria que, antes mesmo de chegar a São Paulo e ser recepcionada pela Terça Nubank e pelo Espaço Memória Banespa no Farol Santander, ela teria embrulhado pra mim um clássico criciumense ambientado numa agência do Banco do Brasil? Só quem viveu sabe!
Foi então que eu percebi que o presente perfeito não seria um objeto novo, impessoal, comprado às pressas enquanto a Isa se distraía olhando carrinho em miniatura na vitrine ao lado. Esse tipo de desfeita se reserva às tias e aos colegas de trabalho. Fazia mais sentido presenteá-la com algo que eu mesma daria valor — um dos meus tesouros, bens de grande refinamento.
Me despeço de Isa Thomé na rodoviária com um pacote, e a orientação de não abri-lo até que entrasse no ônibus. Dentro, o meu objeto mais isa-thomé: uma SOUND MACHINE edição onomatopéias de desenho animado. Resta ao leitor decidir se ela gostou:
O conglomerado jornalístico RESPONDENDO preza pela imparcialidade, e notifica seus leitores de que Isa Thomé publicou hoje seu próprio relato de viagem na revista





















É comovente ver a Laurinha transformar uma simples visita de uma amiga em sp num tratado antropológico sobre a superioridade moral e estética da própria vida urbana *comentário patrocinado pela Nubank Ultravioleta
Laurinha lero eu preciso muito que vc vá para criciúma.