Num raro momento de lucidez, a ex-Raquel de VALE TUDO, ex-secretária da Cultura e atual desempregada Regina Duarte confidenciou ao TV Fama não estar acompanhando o remake da novela: “Não tenho visto, desculpe. Eu não estou assistindo.”
Faz sentido. Novidade nenhuma entre o elenco original essa recusa em comentar o remake. A própria Glória Pires, que em 88 se destacou no papel de Maria de Fátima, também declarou “não ter tempo de assistir” à nova versão. “Estou montando meu longa,” disse à CNN, e logo mudou de assunto.
Ocupadíssima! Todos terrivelmente ocupados. Jamais se viu tamanha ocupação entre a classe artística brasileira. “Tenho me envolvido com tanta coisa… vivendo um momento muito pleno de atividades,” justificou Regina, cuja atividade mais recente foi apoiar a filha no lançamento de uma biografia tão fina que mal parece um objeto 3D.
Pelos números do Ibope, é de se imaginar que o resto do país esteja igualmente ocupado. VALE TUDO teve a quinta melhor audiência da década entre novelas das nove — o que não soa tão ruim até você descobrir que a lista inteira só abrange sete novelas, e que a sétima, MANIA DE VOCÊ, teve o pior desempenho da história da Globo.
Eu mesma não venho assistindo, e Deus sabe que eu não tenho nada melhor pra fazer. Dia desses um homem avançou no meu seio com tanta vontade que a boca dele fez exatamente esse som: glomp, e eu só não mandei ele embora porque até um glomp é melhor do que ficar entediada. Criteriosa eu também não sou; pra alguém como eu, que sobrevive à base do tipo de comida que você daria a um cachorro no aniversário dele, aversão a lixo é o menor dos problemas.
Por que não assistir VALE TUDO, então? Me falta um bom motivo: algo que separe o remake das infinitas opções de entretenimento, que no meu caso incluem o perfil jozi_baby_face, uma mulher de 38 anos que aparenta (ou acredita aparentar) 17, e o fanabus.oficial, página que homenageia com fan edits os ônibus de Osasco.
Agora o bom motivo veio. Com a morte de Odete Roitman, VALE TUDO decepcionou sua maior audiência até agora, exibindo pra milhões de pessoas (incluindo eu) um episódio absurdamente monótono. E olha que mataram a vilã! Imagine assistir essa novela num dia que não morre ninguém?
Boa parte da culpa cai sobre os ombros de Manuela Dias, autora do remake; e com razão. Quem vê o episódio num vácuo não imagina que Manuela teve seis meses pra criar as circunstâncias do assassinato. Parece tudo improvisado. Uma das suspeitas, Maria de Fátima, aparece no início do capítulo procurando um professor de tiro. Meio em cima da hora! Já Olavo revela seu passado como atirador de elite no exército (coisa que até então não vinha ao caso mencionar), e tira da mala um rifle já montado, como é de costume aos atiradores de elite.
Pro azar do Olavo, o elevador emperra e ele perde o timing de atirar na Odete à beira da piscina. Desesperado por uma solução, César pressiona o amigo, que sugere uma abordagem mais ousada, mais íntima, coisa que um rifle à distância não proporciona. Mas que arma usar? Minutos depois, chega um motoboy com uma 9mm embalada em saco de papel. Pistola à pronta-entrega!
Menos verossímil ainda é o plano do Marco Aurélio, saído diretamente daqueles livrinhos de detetive que vendiam em banca de jornal quando ainda existia livro (e banca de jornal).
A fim de garantir o álibi do marido, Leila deixa o chuveiro da suíte ligado e pede um uísque no serviço de quarto. Chegando a bebida, ela anuncia em alto e bom som que o marido está no banho, e pede mais um balde de gelo. No tempo do garçom buscar o gelo na cozinha, Marco Aurélio retorna ao quarto, se livra da arma, tira a roupa e entra no banho. Volta o garçom, sai ele molhado do banheiro. Álibi garantido!
Já seria um plano idiota só de não levar em consideração que qualquer hotel — e nesse “qualquer” incluímos o Copacabana Palace — vem equipado com dezenas de câmeras. Mas vamos supor que, assim como Olavo, Marco Aurélio também tem passagem pelas Forças Armadas, desenvolvendo por lá suas habilidades de hacker. No melhor estilo WatchDogs, ele completa um jogo da memória pra se infiltrar no sistema de vigilância do hotel e passa despercebido pelos corredores. É possível!
Ainda assim, o plano não funciona. Na ausência de câmeras, ninguém pode provar em qual horário, exatamente, o casal entrou no quarto, e pra um álibi o horário faz toda diferença. Chamar o elevador e dar um tiro na Odete é coisa de cinco minutos; qualquer um consegue fazer isso antes de tomar banho. Num prédio velho desses, dá nem tempo do boiler esquentar.
Maria de Fátima, por sua vez, sai do Copa direto pra orla, onde ela se desfaz da possível arma do crime na beirinha do mar — cena muito reminiscente daquela em que o Gob, de ARRESTED DEVELOPMENT, tenta se livrar de uma carta.
Somam-se à lista de suspeitos Celina, irmã de Odete, e Heleninha, a filha alcoólatra. Cinco possíveis assassinos… um mistério a ser resolvido! E como a novela escolhe ilustrar isso? Ué, mas é claro: estampando num quadro de cortiça policial os dizeres QUEM MATOU ODETE ROITMAN?, impressos minutos antes numa folha A4 qualquer cedida pela reprografia do Projac.
Logo aí já se vê que o texto de Manuela Dias não é o único defeito de VALE TUDO — talvez nem o pior. Mesmo sendo responsável pela lambança de álibis mal feitos e 99Armas, Manuela tem influência limitada sobre o produto final.
Cabe à direção de arte, por exemplo, cuidar de detalhes como o quadro de cortiça na delegacia, ou a papelaria usada pelos policiais. Quando o delegado examina as fitas de segurança do hotel (olha aí, Marco Aurélio!), o assistente dele, ou seja lá quem for, toma anotações num post-it MINÚSCULO. A cena toda é o velho ditando nome de suspeito e o outro lá encurvado em cima de um bloquinho verde que não cabe nem o sobrenome ROITMAN. Difícil levar a sério uma investigação dessas.
Também não é culpa da Manuela o figurino absurdo que o elenco usa no enterro. Leila, esposa de Marco Aurélio, passou dois episódios preocupadíssima de ser implicada na morte de Odete, orientando o marido a chamar o mínimo de atenção e agir naturalmente. Chega o enterro e ela aparece como? Num crop top de renda vazado e sutiã à mostra! (Preto, claro. Algum decoro é preciso.)
Sem falar no jornal interno à novela, que publica foto de corpo ensanguentado na primeira página e, pior, termina manchete com ponto de interrogação.
Não tinha um repórter desocupado que o departamento de jornalismo da Globo pudesse emprestar? Um diagramador que seja? Uma cópia do manual de redação? Por que um jornal cenográfico exibido em horário nobre sai menos caprichado que o de uma produção teatral de fim de ano no colégio Marista?
Pode parecer implicância reclamar de um detalhe pequeno desses, e talvez seja mesmo. Não é como se a senhora telespectadora desligasse a TV revoltada com o desrespeito aos parâmetros internacionais do jornalismo; aqui no bairro pouco se comentou que o título da matéria tá alinhado ao centro.
Mas são os detalhezinhos, acumulados de cena em cena, que dão um ar desleixado à produção — produção essa já muito empobrecida pelos cortes de orçamento da Globo. Se tá ruim assim no departamento de arte, imagina o resto. Pro nosso olhar acostumado não é tão gritante a monotonia do enquadramento, ou a mesmice do jogo de câmera (tudo bem engessado, pra economizar), até você rever no youtube um clipe qualquer da VALE TUDO original.
Olha a cena em que a Celina de 88 descobre que Odete foi assassinada:
Tudo nesse clipe é marcante! O movimento da grua focando no rosto do Afonso, o sangue escuro da Odete empoçado no chão, a trilha macabra, a câmera tremida como se o próprio assassino tivesse filmando. Agora compara com a Celina do remake descobrindo a mesma coisa:
Longe de mim defender Manuela Dias, mas texto nenhum melhora uma direção dessas, ou uma atuação dessas. Tá tudo errado. SHAKESPEARE não salvaria uma novela da Globo. E daqui só tende a piorar: quanto menos se exige do entretenimento de massa, menos chance a próxima geração tem de notar que alguma coisa tá errada.
Não é à toa que na internet só se reclama do texto. Que base você tem pra comparar a linguagem visual de VALE TUDO, se qualquer coisa que passa na TV é a mesma bosta? Resta criticar o óbvio: o desespero de viralizar o chavão QUEM MATOU ODETE ROITMAN, ou a bigbrotherização das novelas, com 200 inserções publicitárias por minuto. Aliás, no mesmo episódio dessa cena aí, um dos personagens pergunta qual é aquela promoção que cê tava falando mesmo?, ao que o outro responde: o Mega Ofertas Amazon Prime?
Pra não dizer que a dramaturgia da Globo é de todo ruim, eu tava mesmo precisando de um Kindle novo. Comprei depois do episódio e já chegou aqui em casa. Deus te abençoe, Manuela!
Todas as coisas ditas aqui sobre a teledramaturgia são verdadeiras e revoltantes. Mas saber que agora tem um Kindle verde matcha, quando eu já comprei o azul, é a tapada do dedinho no pé da cama que eu não precisava.
Quem matou o podcast de Laurinha Lero?